Como a sociologia pode ampliar o que conhecemos por mudanças climáticas

Como a sociologia pode ampliar o que conhecemos por mudanças climáticas

08 de julho de 2021 | Tempo de leitura: 7 minutos

Por Aline Radaelli

As mudanças climáticas registradas nas últimas décadas são uma realidade inegável e tem ganhado escalas de frequência e intensidade. Uma de suas expressões é o aumento de temperatura média global, evidenciada em séries históricas ou por pesquisas de opinião sobre a percepção das alterações por parte do público . No esforço de chamar atenção para este acontecimento, diferentes nomenclaturas podem ser acionadas: mutação climática, crise climática, alteração climática ou mesmo emergência climática. Quaisquer que sejam os nomes dados a este processo, ele definitivamente não é uma “crise”, como bem nos alerta o antropólogo Bruno Latour: “crise” é um termo que deixa subentendido que passaremos por ela, de que seria uma fase superável e momentânea; quando, na verdade, estamos caminhando de fato para uma mudança de todos os processos bioquímicos da Terra, muitos deles irreversíveis e, portanto, modificados.

          Há quem afirme que ultrapassamos a margem de tolerância do equilíbrio ecossistêmico e já deixamos bem para trás seu ponto de retorno, mas há também quem visualiza ainda ser possível evitar sua escalada, contanto apostemos desde já, e com maior urgência possível, em transformações sistêmicas. Se chegamos no “tempo das catástrofes”, como o título do livro da filósofa Isabelle Stengers sugere, isso se deu essencialmente por obra nossa – humanidade – e pelo tipo de sociedade moderna que preferimos preconizar.

          Um dos termos utilizados para, digamos, nos responsabilizar pelas marcas que imprimimos e seguimos imprimindo na Terra é o Antropoceno, uma nova era geológica caracterizada por ser a era da perturbação humana, segundo a antropóloga Anna Tsing, no sentido de ser a causadora de distúrbios e alterações de ecossistemas.

Para o intelectual e liderança indígena Ailton Krenak, a marca mais profunda do Antropoceno é “nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade”. Fixa e homogênea, como se de fato fôssemos uma única humanidade em busca de uma única paisagem de modernização, desenvolvimento e crescimento.

          Então, embora o termo Antropoceno possa receber críticas ao nos remeter a uma ideia uníssona de humanidade, como se todos da espécie humana tivesse o mesmo equivalente de responsabilidade na cilada ambiental que nos encontramos, é preciso questionar de que humanidade estamos falando, sendo que há múltiplas formas de existir.
No interior dessa multiplicidade de atores e existências, as mudanças climáticas podem ser coisas diferentes. Assim como podem produzir ou mobilizar diferentes objetos, oriundos de diferentes práticas e vivências, e a partir disso serem experenciadas e sentidas de maneira diferente. É o que minha pesquisa em andamento procura investigar em interlocução com comunidades ribeirinhas do Amazonas, especialmente em períodos de estiagem dos rios.

          A partir de uma pesquisa de campo exploratória realizada com interlocutores de cinco comunidades diferentes (no início de 2020, antes da pandemia), trago elementos que exemplificam: práticas como modificar os horários de trabalho na roça uma vez que “o sol está mais quente” traz a efeito as mudanças climáticas na forma como são sentidas e elaboradas. Ou mesmo observar e medir a “altura que o aruá deposita seus ovos no tronco de uma árvore” e o que isso diz a respeito da intensidade da cheia dos rios naquela estação. Ou então observar a intensidade da “força do repiquete” e de que maneira isso informa sobre a intensidade da vazante do rio. Esta intensidade da vazante do rio também pode ser observada pelas práticas de deslocamento (rebocamento) de casas em uma comunidade flutuante, já que, segundo uma interlocutora de flutuante, “minha casa é como peixe: se ficar na terra, morre”.

Figura 1. Um dos acessos da comunidade São Francisco da Costa da Terra Nova, município de Careiro da Várzea, Amazonas. No centro da foto ao fundo, o rio Amazonas. As marcas nos troncos das árvores que os deixam bicolores são os níveis normais da última cheia. Foto: Aline Radaelli, março/2020.

 Medidas globais como “partes por milhão”, gigatoneladas de CO2 na atmosfera ou Watt/m² de radiação solar são formas de trazer à existência ou traduzir as mudanças climáticas. Porém, localmente, de que constituem essas medidas? Talvez elas pouco dizem para ações locais ou políticas públicas de mitigação ou adaptação.

          Se queremos agir com certa urgência para “adiar o fim do mundo”, nossa tarefa basilar é entender e abarcar os múltiplos conhecimentos e efeitos que as expressões locais das mudanças climáticas reverberam.

          Para tanto, as ciências sociais, e sua cada vez mais necessária inserção na temática, têm sido relevantes para a ampliação da nossa capacidade de compreender e agir diante dos efeitos das mudanças climáticas, sobretudo considerando os estudos etnográficos que trazem elementos outros a partir dos múltiplos conhecimentos tradicionais e indígenas, adensando o conhecimento climático por um lado e, por outro, debatendo os limites dos termos aplicados acriticamente às políticas climáticas. Exemplo disto é o próprio esforço descritivo que as últimas pesquisas realizaram sobre práticas e ações de atores, buscando promover um maior entendimento das diferentes expressões do que sejam mudanças climáticas, e como essa realidade é constituída e enfrentada, sobretudo para comunidades ribeirinhas da Amazônia. Assim estaremos um pouco mais próximos de formular saídas que favoreçam nossa existência tanto quanto a de demais espécies.

Figura 2. Uma das casas flutuantes da comunidade do Catalão, município de Iranduba, Amazonas. A comunidade fica na região de confluência entre os rios Negro e Solimões. Foto: Aline Radaelli, março/2020.  

Ciência se faz com parceria

Minha pesquisa acontece no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS, com auxílio financeiro de bolsa da CAPES, e integra o componente socioambiental do Programa AmazonFACE. O AmazonFACE surge como proposta de pesquisa em longo prazo para avaliar os efeitos do aumento de gás carbônico (CO2) na floresta Amazônica a partir da tecnologia “Free Air CO2 Enrichment” – FACE. Esta tecnologia é característica principal do projeto – razão pela qual dá nome ao programa -, operacionalizada a partir de uma megaestrutura de experimento de campo (em uma localidade próxima à Manaus, Amazonas). A estrutura foi montada com vistas a expor parcelas primárias da floresta Amazônica a uma concentração de gás carbônico prevista nas projeções das mudanças do clima. E então, analisar como o ecossistema reage, tanto em nível supra solo, como em parcelas do subsolo, onde há importantes ecossistemas de fungos e bactérias essenciais para a saúde das árvores. O objetivo do programa é entender “como as mudanças climáticas afetarão a floresta Amazônica, a biodiversidade que abriga e os serviços ecossistêmicos que ela fornece à humanidade”.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 (acesse aqui).

Anna Tsing. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB/Mil Folhas, 2019. (acesse aqui).

David Lapola et al. Limiting the high impacts of Amazon forest dieback with noregrets Science and policy action. PNAS, 2018. (acesse aqui).

Júlia Menin. “A natureza se move e a gente se move junto”: práticas de adaptação às mudanças climáticas em comunidades ribeirinhas da Amazônia. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 2021. (no prelo)

Lorena Cândido Fleury; Jean Carlos Hochsprung Miguel; Renzo Taddei. Mudanças climáticas, ciência e sociedade. Sociologias, v. 21, n. 51, p. 18-42, 2019. (acesse aqui).

Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015. (acesse aqui)

Aline Radaelli é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo (ESALQ-USP) e mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É integrante do grupo de pesquisa Tecnologia, Ambiente e Sociedade – TEMAS-UFRGS e da equipe de editoria da Revista Contraponto, revista discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.

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