Adequação ambiental de propriedades rurais na Amazônia após 10 anos de Código Florestal
05 de julho de 2022 | Tempo de leitura: 8 minutos
Por Sâmia Nunes
A adequação ambiental visa identificar e implementar ações necessárias para resolver irregularidades ambientais em propriedades rurais privadas. Entre as irregularidades mais comuns estão o passivo de vegetação – área que foi desmatada ilegalmente e que precisa ser recomposta ou compensada – em áreas de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). A conservação e recomposição da vegetação nativa em áreas privadas é regulamentada pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa – LPVN – (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012), conhecida como Código Florestal Brasileiro – que completa 10 anos neste ano. Segundo a LPVN, as APPs foram criadas para proteger áreas sensíveis como vegetação no entorno de recursos hídricos, áreas declivosas (> 45°) e manguezais, onde apenas atividades de baixo impacto, como ecoturismo, são permitidas. Já a RL tem o papel de promover o uso sustentável dos recursos naturais, onde atividades econômicas como o corte seletivo de madeira são permitidas, mas não o corte raso.
O grande problema é que, mesmo que o Brasil possua uma das mais completas (e complexas) legislações ambientais do mundo, o país não consegue avançar na implementação destas leis em duas frentes principais: frear o desmatamento e promover a recomposição da vegetação nativa em larga escala. Para se ter uma ideia do tamanho deste problema, ainda em 2016 e 2019 publicamos as primeiras estimativas de passivo e excedente de floresta em RL e APP em escala estadual, no Pará, utilizando limites reais de propriedades rurais. Os estudos mostraram que quase 11% (ou 23 mil km²) da RL apresentava passivo de vegetação. Observação: mais da metade do Pará é protegido por lei.
Mostramos também que 7% (10 mil km²) das APPs mapeadas precisam ser recuperadas e 44% (em torno de 56 mil km²) foram desmatadas ilegalmente, mas não precisam de recomposição (as famosas áreas consolidadas), devido às mudanças na última revisão da LPVN há dez anos. Isso significa uma área do tamanho de um país como Porto Rico, desmatada ilegalmente em APPs e RL!
Continuando a contagem, eu e meus colegas do Instituto Tecnológico Vale (ITV) publicamos em 2019 a mesma análise, só só que em escala refinada, para a bacia hidrográfica do rio Itacaiúnas. Localizada ao sudeste do Pará, a bacia possui uma área de aproximadamente 41.300 km² – equivalente ao tamanho da Suíça. É uma região intrigante, no arco do desmatamento, que já perdeu 50% de suas florestas, principalmente para formação de pasto. A bacia é de alta importância econômica para a mineração e possui 30% de seu território em áreas protegidas públicas. Neste trabalho, mostramos um cenário ainda pior, em termos proporcionais, com um passivo total (APP+RL) de 5.700 km², sendo que 58% disso deve ser recuperado e 42% poderia ser compensado via “aluguel” de floresta em outra propriedade do mesmo bioma (é o mecanismo de compensação de RL). Veja em outro texto do ITV, no Blog do Conexões Amazônicas, o impacto que este desmatamento causou na bacia, como o aumento das vazões dos rios.
Localização da bacia hidrográfica do rio Itacaiúnas e ocupação da terra. Fonte: Sâmia Nunes.
Distribuição do passivo de florestas na bacia hidrográfica do rio Itacaiúnas (km²). Fonte: Sâmia Nunes.
Mas, para aumentar a escala da recomposição de florestas na Amazônia é necessário mais do que um mapa.
Por isso, os(as) pesquisadores(as) do ITV trabalharam em publicações que discutem oportunidades, desafios e barreiras estruturais para a recomposição em larga escala, como: estimular arranjos produtivos com retorno econômico, promover a condução da regeneração natural quando possível para reduzir os custos, implementar incentivos efetivos (por exemplo, com o pagamentos por serviços ambientais, e regulamentação do mercado de carbono), conectar demanda e oferta para estabelecimento da cadeia de valor e escoamento de produção, desenvolver comunidades locais para aumentar disponibilidade de sementes e mudas e de mão de obra para implantação, investir em pesquisa e desenvolvimento de espécies nativas para maior eficiência (por exemplo, através de nutrição de plantas, manejo de solos e melhoramento genético), seleção adequada de espécies com adaptações específicas, selecionar áreas de baixa aptidão agrícola para recomposição, e buscar parcerias entre empresas, governo e comunidade para implementar projetos de recomposição.
Finalizo esta discussão afirmando que precisamos virar a página (ir além) dos diagnósticos e monitoramentos da floresta. Isso é um desafio resolvido e já existem muitos trabalhos e sistemas (públicos e independentes) confiáveis sobre onde está localizada a degradação e qual é o tamanho dos danos.
Após exatamente dez anos da última revisão da LPVN, o país ainda não conseguiu colocar em prática esta lei e suas políticas.
É preciso implementar novos arranjos e mecanismos para que a cadeia de valor da recomposição se estabeleça, desde a disponibilidade de sementes e mudas até a comercialização e beneficiamento de produtos madeireiros e não-madeireiros. Além de incentivos à conservação e recomposição de florestas, tendo como aliado o desenvolvimento socioeconômico da região.
Ciência se faz com parceria
Os trabalhos sobre adequação ambiental no Pará foram realizados em parceria com o Imazon e Rede Amazônica Sustentável. Os estudos realizados na bacia do Itacaiúnas foram financiados pelo ITV e Vale, como parte da meta florestal assumida pela companhia de recuperar e proteger 500.000 hectares de áreas até 2030.
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Artigos científicos:
Gastauer, M. et al. 2020. Structural Hurdles to Large-Scale Forest Restoration in the Brazilian Amazon. Frontiers in Ecology and Evolution, 8. (acesse aqui)
Nunes, S. et al. 2020. Challenges and opportunities for large-scale reforestation in the Eastern Amazon using native species. Forest Ecology and Management, 466, 118120. (acesse aqui)
Nunes, S. et al. 2016. Compensating for past deforestation: Assessing the legal forest surplus and deficit of the state of Pará, eastern Amazonia. Land Use Policy, 57, 749-758. (acesse aqui)
Nunes, S., et al. 2019. Potential for Forest Restoration and Deficit Compensation in Itacaiúnas Watershed, Southeastern Brazilian Amazon. Forests, 10(5), 439. (acesse aqui)
Nunes, et al. 2019. Uncertainties in assessing the extent and legal compliance status of riparian forests in the eastern Brazilian Amazon. Land Use Policy, 82, 37-47. (acesse aqui)
Sâmia é Engenharia Florestal formada pela Universidade Federal Rural da Amazônia, com Mestrado em Ecossistemas Florestais pela ESALQ/USP e PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de Lancaster, UK. Atualmente é pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale (ITV), onde coordena pesquisas sobre recomposição de florestas em propriedades privadas na Amazônia.
Veja mais na Plataforma Lattes.