Ciência aplicada e a biodiversidade subterrânea na Amazônia

Ciência aplicada e a biodiversidade subterrânea na Amazônia

19 de agosto de 2021 | Tempo de leitura: 9 minutos

Por Leonardo Trevelin

Ao fechar a primeira metade do ano envolto em um ritmo alarmante de desmatamento na Amazônia, o Brasil de 2021 parece um território hostil a qualquer cientista da conservação. A partir da interação destas ameaças regionais com estressores globais de clima, cientistas preveem perdas irreversíveis para a biodiversidade.

Um dos papéis-chaves que a ciência pode desempenhar neste cenário é o de documentar e trazer evidências. Se a perspectiva de impactos irreversíveis para a biodiversidade soa como um cenário alarmista fora dos muros da academia, é na presença de evidências que o discurso pode virar prática e alcançar mais pessoas. Em um contexto onde o conhecimento sobre a biodiversidade (especialmente a Amazônica) ainda apresenta lacunas sobre quais são as espécies, onde estão distribuídas ou quais as dinâmicas que seguem (veja mais sobre as lacunas de conhecimento aqui), contextualizar narrativas com evidências que preencham estas lacunas pode ser um caminho para redenção da biodiversidade e da ciência da conservação brasileira.

No setor privado, as diversas etapas do licenciamento ambiental de empreendimentos produzem atualmente dados de biodiversidade com potencial de preencher estas lacunas. Um bom exemplo são os ecossistemas subterrâneos e seus componentes mais acessíveis e conhecidos, as cavernas. Estes representam um grande desafio para conservação no Brasil, uma vez que sua distribuição agregada coincide, frequentemente, com reservas minerais ou terras de interesse ao agronegócio, ambos de grande potencial econômico. Até o início de 2020, o Brasil possuía pouco mais de 20 mil cavernas documentadas em seu território, ano em que o setor mineral contribuiu com cerca de 3,182% do PIB brasileiro. Dá para ter uma ideia do desafio. 

Dotados de uma biodiversidade única, ecossistemas subterrâneos abrigam desde espécies visitantes facultativas até espécies que são classificadas como obrigatoriamente subterrâneas, com adaptações para a vida no subsolo.

As espécies obrigatoriamente subterrâneas são especialistas de habitat, em sua maioria muito raras ou até micro-endêmicas (ou seja, são limitadas em sua distribuição geográfica e capacidade de dispersão). Para estas espécies as lacunas no conhecimento são as mais evidentes e as mais impactantes. Isso porque é justamente a presença destas espécies raras e ameaçadas que ajuda a definir a categoria da proteção de uma cavidade.

No Brasil, após um decreto sancionado em 2008, toda cavidade envolvida no licenciamento ambiental passou a ser estudada e classificada quanto à sua relevância, de acordo com um conjunto de características biológicas, geológicas e culturais, com destaque para as espécies subterrâneas obrigatórias.

Desde então, o número de estudos em cavidades aumentou na mesma medida que novos empreendimentos eram propostos para as agências ambientais. 

Interior de um caverna ferrífera em Carajás. Créditos: Luciana Moreira e Leonardo Trevelin

Espécies subterrâneas obrigatórias são conhecidas na espeleologia (estudo dos ambientes subterrâneos) como “troglóbios”. São espécies que costumam apresentar características associadas às restrições que estes ambientes extremos impõem, como por exemplo a ausência de pigmentação cutânea, redução de olhos e apêndices sensoriais alongados. A) Charinus ferreus e B) Paracymbiomma sp., ambos troglóbios Aracnídeos, e C) Entomobryidae, um Collembolla troglóbio. Créditos nas fotos: Matheus Simões, Xavier Prous e Robson Zampaulo, respectivamente.

A Floresta Nacional de Carajás e seus geossistemas ferruginosos, por exemplo, no sudeste do estado do Pará, abarca uma das maiores reservas de minério de ferro do mundo, com mais de 1000 cavernas ferríferas documentadas. As atividades minerárias remontam desde a década de 80, mas se intensificaram nas décadas seguintes, fazendo da região um bom exemplo de desafio da conservação aliada ao desenvolvimento econômico. É neste cenário que o grupo de pesquisa que faço parte vem compilando e analisando dados oriundos de estudos ligados ao licenciamento ambiental na região, buscando evidências que ajudem a preencher lacunas de conhecimento tão características de  ecossistemas subterrâneos.

As paisagens na Serra de Carajás (A) abrigam a Floresta Amazônica nas baixadas e encostas envolvendo os morros, que contam em seus topos com um tipo de vegetação específica que ocorre sobre substrato de ferro, chamada de Canga. (B) São paisagens heterogêneas que aliam ambos estes ambientes naturais com a atividade de mineração (ao fundo). Entremeadas nesta paisagem exterior, encontramos as cavidades naturais como porta de entrada aos ecossistemas subterrâneos (C). Créditos nas fotos: Acervo ITV-DS.

Em um estudo publicado em 2018, baseado em dados compilados da ocorrência de espécies subterrâneas obrigatórias em 473 cavernas, demonstrou-se como a paisagem externa a uma cavidade pode influenciar tanto quanto suas características internas (dimensões e heterogeneidade) na diversidade e composição de espécies que esta caverna abriga. A maioria destas espécies estavam de fato restritas a uma ou poucas cavernas, mas algumas foram encontradas em mais de 100 cavernas, sendo que cavernas próximas compartilhavam mais espécies que as distantes. Em um segundo estudo publicado em 2019, aproveitamos o mesmo banco de dados para investigar possíveis subgrupos indicadores de biodiversidade, úteis para se estudar apenas uma parte que represente o todo da biodiversidade. Desta vez, demonstramos que as espécies raras, foco da legislação para classificação de cavernas,  não foram tão boas em prever todo o histórico evolutivo da biodiversidade cavernícola. Por outro lado, o uso de espécies pertencentes aos grupos dos Aracnídeos (Arachnida) e dos Colêmbolos (Entognatha) foi mais eficiente para este fim. Novamente, a eficiência destas espécies indicadoras funcionava melhor entre cavernas mais próximas. 

Em outro estudo de 2021, desta vez monitoramos a abundância de 33 espécies cavernícolas ao longo de quatro anos, usando dados da mesma região. Dentre espécies de invertebrados subterrâneo-obrigatórias e vertebrados visitantes ocasionais, como roedores e anfíbios, curiosamente, espécies de Aracnídeos novamente se destacaram em indicar respostas frente às atividades antrópicas avaliadas. Assumindo que quatro anos representam um período ainda inicial para avaliação de impactos, consideramos estas espécies como indicadores de “curto prazo” de efeitos da mineração sob a biodiversidade nestes ecossistemas (veja mais sobre espécies indicadoras aqui). Ainda assim, para a maioria das espécies que analisamos, nenhum padrão claro foi detectado, sugerindo a necessidade de períodos maiores de monitoramento e acúmulo de evidências.

Seguimos avançando em outras frentes, mas os resultados encontrados nestes estudos já trouxeram luz sobre a relevância da paisagem externa para a biodiversidade em ecossistemas subterrâneos. Isso significa que a conservação da biodiversidade cavernícola está interligada com a paisagem que envolve estes ecossistemas. Além disso, nossos resultados contribuem na otimização dos processos de monitoramento ambiental, direcionando a aplicação de recursos para grupos de espécies indicadoras em desenhos experimentais mais adequados. São exemplos de como os cientistas da conservação podem avançar nas suas fronteiras de atuação para contribuir com a prática da conservação baseada em evidência.

Carollia perspicillata, morcego frugívoro comum em ambientes cavernícolas. Créditos: Luciana Moreira e Leonardo Trevelin

Ciência se faz com parceria

Os resultados compartilhados nestes estudos foram todos embasados em dados abertos, gerados durante atividades de licenciamento ambiental. Eles foram trabalhados por um grupo diverso de pesquisadores, analistas ambientais e outros atores envolvidos (stakeholders) dentro do programa de pesquisa sobre Biodiversidade Cavernícola na região das Serras do Carajás, sediado no Instituto Tecnológico Vale, em Belém, Pará.  

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Artigos científicos:

Auler; Piló. 2015. Caves and mining in Brazil: the dilemma of cave preservation within a mining context, In: Andreo et al. (Eds.). Hydrogeological and environmental investigations in karst systems. Berlin: Springer, p. 487-496. (acesse aqui)

Jaffé et al. 2018. Conserving relics from ancient underground worlds: assessing the influence of cave and landscape features on obligate iron cave dwellers from the Eastern Amazon. PeerJ 6, e4531 (acesse aqui

Trevelin et al. 2019. Biodiversity surrogates in Amazonian iron cave ecosystems. Ecological Indicators 101(5): 813-820. (acesse aqui

Trevelin et al. 2021. Optimizing speleological monitoring efforts: insights from long-term data for tropical iron caves. PeerJ 9, e11271 (acesse aqui)

Reportagem:

Vida subterrânea, matéria da Revista Pesquisa Fapesp escrita por Maria Guimarães. Edição 224, 2014. (acesse aqui)

Leonardo Carreira Trevelin é ecólogo, mestre em Zoologia (UNESP de Rio Claro) e Doutor em Zoologia (Museu Paraense Emílio Goeldi/UFPA). Trabalha com biodiversidade Amazônica desde 2009 e atualmente é pesquisador no grupo de biodiversidade do Instituto Tecnológico Vale em Belém, Pará. Veja mais na Plataforma Lattes e ResearchGate

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