Joias da resistência – mais que uma pesquisa científica, um clamor pela existência

Artigo publicado originalmente na coluna do Conexões Amazônicas, no site Portal Amazônia

Joias da resistência – mais que uma pesquisa científica, um clamor pela existência

22 de setembro de 2025 | Tempo de leitura: 8 minutos

Por Laize Almeida de Oliveira

O fazer artesanal sempre foi uma curiosidade para mim. Sempre olhei com admiração para as peças únicas, tecidas de histórias, de ancestralidade, de lágrimas e de alegrias. Como uma boa paraense que sou, me joguei em um mundo que, para muitos, é desconhecido, desvalorizado e frequentemente estigmatizado.

À esquerda, biojoias feitas com cerâmica marajoara pela artesã Thifany de Soure (PA); ao centro, fibra tururi extraída da palmeira ubuçu já tingida e pronta para fabricação de biojoias; à direta, colar de biojoias feito com sementes jarina e açaí pelas artesãs da AERAJ – Associação Educativa Rural e Artesanal da Vida de Joanes, Salvaterra, (PA). Fotos: Laize Almeida de Oliveira

Sou uma pesquisadora paraense que precisou buscar formação em outro estado, já que não havia doutorado na minha área — de Administração — em universidades públicas do Pará. Ainda assim, sempre carreguei comigo minhas raízes, o orgulho do chão que sempre pisei. Por isso, decidi fazer minha pesquisa sobre o trabalho institucional com artesãs de biojoias na nossa Amazônia paraense.

Assim, embarquei em uma grande aventura, tecida de curiosidade, descobertas e acolhimento. Minha primeira parada foi uma visita exploratória em busca de artesãs de biojoias na Ilha do Marajó. Visitei as cidades de Soure, Salvaterra e Muaná. Mergulhei em uma imersão, em uma vivência profunda, e pude observar um campo vasto e produtivo, mas também marginalizado — com pouca visibilidade institucional, fragilidade normativa e estigmatização territorial.

Fui em busca de respostas e encontrei histórias, vidas e uma riqueza traduzida em adornos que refletem muito mais do que beleza.

Eles são enraizados em cultura, em um sentimento de pertencimento às próprias raízes. São resistência. Sim, muitas histórias resistem. São a própria resistência pela sobrevivência de um fazer artesanal que insiste em continuar, que preserva o meio ambiente ao se opor ao uso de produtos tóxicos e transforma sementes, cascas e folhas em matéria-prima rica em biodiversidade.

Nesse percurso, precisei desfazer meus próprios medos para ir mais longe. Foi quando, mesmo sem saber nadar, tive que percorrer o Marajó de balsa e em barcos menores — tudo em busca de lojas de artesanato, de artesãs. Eu não queria apenas observar: eu queria viver junto esse momento.

Nem tudo são flores, aliás, aqui, são sementes. Chegar até as artesãs não foi fácil. Em muitos momentos, pensei em desistir. Por onde eu passava, perguntava se conheciam artesãs de biojoias, e as pessoas iam me indicando lugares, nomes, histórias. Bati em muitas portas que guardavam, sim, uma riqueza e uma vivência no artesanato, mas ainda não eram as artesãs de biojoias que eu buscava. E por que tanta insistência nas biojoias? Porque, para mim, isso é um propósito. Não é apenas uma escrita científica.

À esquerda, vista da embarcação que faz o transporte de passageiros entre o porto do Camará e Belém (PA. Acima e à direita, visita à Casa do Artesão em Salvaterra (PA). Abaixo e à direita, visita à Casa do Artesanato de Soure (PA). Fotos: Laize Almeida de Oliveira

Carregava comigo não apenas meu caderno de campo, mas também um coração acelerado, ansioso pelas conversas que estavam por vir. Dormi em pousadas simples; por ali também reencontrei amigos de longa data que foram meus primeiros informantes. Partilhei com conhecidos a alegria de um almoço em família, o tradicional açaí com peixe, uma delícia de vivência.

Quando o barco percorria as longas ruas amazônicas que são os rios, uma paz atravessava meu coração. Nunca vi tanta beleza: casas escondidas na mata, uma infinitude de pés de açaí, e o nascer do sol mais lindo que já presenciei. Tive que viajar de madrugada, saindo de Soure para pegar a balsa no porto, e chegamos ao amanhecer justo a tempo de ver o sol surgir das águas calmas do rio.

Em Soure e Salvaterra, mergulhei na cultura local. Vi nas peças feitas de sementes ou cerâmica os grafismos marajoaras. Que peças lindas! E o desejo daquelas artesãs de perpetuar o aprendizado transmitido por suas avós me comoveu. Com esse ímpeto, atravessei o rio em um barco pequeno e confesso: por não saber nadar, estava apreensiva. Mas fui com minha habitual retidão, porque estava indo em busca de mais histórias, de mais artesãs de biojoias.

Decidi, então, atravessar a Ilha do Marajó e voltei a Belém, para visitar o maior polo joalheiro do nosso estado: o Espaço São José Liberto. Que lugar rico! Mas era apenas uma passagem. Meu destino era Muaná, cidade mais ao sul da ilha.

A simplicidade do povo de Muaná me encanta e, ao mesmo tempo, me entristece. Lá, vivenciei a extinção de uma associação de mulheres que produziam biojoias. Havia ali, no passado, uma fábrica de biojoias construída pelo governo do estado do Pará. A região é rica não apenas em sementes de açaí, mas também em uma biodiversidade impressionante. Essas mulheres trabalhavam principalmente com a fibra do tururi, uma palmeira que, até então, eu desconhecia.

À esquerda, palmeira ubuçu, matéria-prima usado em biojoias, encontrada nos campos marajoaras da cidade de Muaná (PA). Acima e à direita, fibra tururi extraída da palmeira ubuçu já tingida e pronta para fabricação de biojoias. Abaixo e à direita, coco da palmeira ubuçu, encontrado nos campos marajoaras da cidade de Muaná, quando em visita a campo. Fotos: Laize Almeida de Oliveira

Minha alma curiosa me levou até os campos marajoaras, atrás dessa palmeira. Depois de alguns quilômetros percorridos numa moto pequena, acompanhada de um amigo, conseguimos encontrar o fruto e a fibra. Ali, pude ver o quanto essas mulheres se esforçam para preparar a matéria-prima e transformá-la em biojoias e outros adornos.

Sem contar que a moto quebrou no meio do nada. E o pensamento que me veio foi: “uns 12 km só empurrando uma moto… tudo bem com isso?” No fim, conseguimos improvisar uma gambiarra e voltar para a cidade.

Tudo isso me atravessou as histórias, os rios, os cheiros, o barro, o açaí. Ser pesquisadora na Amazônia é um compromisso ético, afetivo e político. É escutar com o corpo inteiro, molhar-se nas travessias e encontrar sentido nos olhos de quem compartilha sua história com esperança e dor.

Acima e à esquerda, vista de embarcações no porto de Muaná (PA); acima e à direita, percurso de barco entre a cidade de Soure e Salvaterra (PA); abaixo, porto da cidade de Muaná. Fotos: Laize Almeida de Oliveira

Encontrei mais que dados: encontrei memórias tecidas por resistência. Em cada semente nas mãos das artesãs, pulsa uma economia criativa silenciada pelas instituições, mas viva. Um saber que não está nos editais, mas que transforma vidas.

Ser mulher pesquisadora aqui é também enfrentar o machismo e o colonialismo acadêmico que deslegitima nossas escolhas e territórios. Escolhi olhar para o meu chão, para minhas raízes, para o fazer potente e invisibilizado dessas mulheres. Isso também é um ato político.

Ao final de cada entrevista, sentia que ganhava algo de volta. Meu caderno virou diário de campo e de afeto. Escrevo não só para a academia, mas para devolver voz e reconhecimento a essas mulheres. Nem toda joia brilha no ouro, algumas brilham no tururi, no açaí seco e na coragem de existir.

O fazer cotidiano das artesãs de biojoias, ainda que silencioso e afastado dos centros de poder simbólico, revelou uma capacidade de reconfigurar identidades, preservar saberes ancestrais e construir novos espaços de pertencimento, reafirmando que o trabalho institucional também nasce das resistências e dos gestos cotidianos, muitas vezes mediados pelas distintas formas de reflexividade presentes em seus fazeres.

Evidenciei, ao longo da pesquisa, que a atividade das artesãs de biojoias se insere em um campo institucional atravessado por cinco dimensões centrais: (i) assimetrias de poder; (ii) desigualdades regionais; (iii) fragilidade normativa; (iv) atuação fragmentada das instituições; e (v) resistência criativa. Entre tantas fragilidades, encontrei nelas um trabalho institucional que se revela como uma resistência social silenciosa, não feita de discursos grandiosos, mas de gestos cotidianos que contestam a desvalorização simbólica e reafirmam o direito à cultura. Foi principalmente entre mulheres que percebi essa força: são elas que, no fazer artesanal, tecem redes solidárias, preservam memórias, ressignificam identidades e transformam sementes em joias carregadas de pertencimento.


Agradeço ao meu orientador Mozar José de Brito, que muito contribuiu para construção desse trabalho e a Fapemig que tem viabilizado financeiramente a realização dessa pesquisa.

Sobre a autora

Laize Almeida de Oliveira – Nascida na cidade de Bom Jesus do Tocantins-PA, é doutoranda em Administração pela Universidade Federal de Lavras-UFLA. Pesquisa o trabalho institucional de artesãs de biojoias da Amazônia paraense. Apaixonada por adornos regionais, dedica-se a experienciar esse campo vasto e produtivo do artesanato de biojoias da Amazônia paraense.

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