O que acontece com a dispersão de sementes enquanto a biodiversidade da Amazônia é perdida?

01 de julho de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Liana Chesini Rossi

Quando um animal consome um fruto ocorre o que é conhecido na ciência como uma interação ecológica. Na natureza, interações como esta são parte de processos fundamentais para a existência e permanência das florestas. Plantas se beneficiam quando animais frugívoros, como aves e mamíferos, ingerem seus frutos porque isso garante ou, no mínimo, aumenta a chance de suas sementes serem levadas para longe e, assim, germinarem (veja mais sobre o trabalho desenvolvido com os macacos barrigudo e recém publicado no Blog do Conexões Amazônicas). Animais também se beneficiam por terem alimento disponível. Essa interação, chamada de frugivoria, que nada mais é do que a dispersão de sementes por animais, vem sendo estudada em diferentes partes do mundo e muitas perguntas ainda precisam ser respondidas.

Animais se alimentando de frutos de espécies de plantas nativas da floresta Amazônica. Da esquerda para a direita, macaco-de-cheiro (Saimiri sciureus) comendo frutos de Miconia pyrifolia; cutia (Dasyprocta leporina) comendo os frutos da planta mururé (Brosimum acutifolium);  jacupiranga (Penelope pileata) alimentando-se de frutos da planta Casearia arborea e, abaixo, grupo de jacamins (Psophia viridis) se alimentando de polpa de uchi (Endopleura uchi). Fotos de Liana Rossi/RAS.

Registrar interações de frugivoria não é uma tarefa fácil, especialmente na Floresta Amazônica, a maior floresta tropical e com a maior biodiversidade do planeta. Árvores que podem ultrapassar 70 metros de altura e um número elevado de espécies, tanto de plantas (ao menos 40.000 espécies), como de animais (são mais de 400 espécies de mamíferos e quase 1.300 de aves), tornam o registro dessas interações uma tarefa ainda mais desafiadora. Para além destas adversidades, fatores como o avanço da fronteira agrícola vêm intensificando o desmatamento e a degradação da floresta amazônica. Em 2021, só no mês de maio, a área total de floresta amazônica que foi derrubada equivale à área da cidade do Rio de Janeiro. Além disso, os efeitos das mudanças climáticas também já são sentidos na região, intensificando e tornando mais frequente os incêndios florestais na Amazônia.

Neste cenário, o foco principal da pesquisa que trago aqui no Blog do Conexões Amazônicas é aprofundar o conhecimento sobre a interação ecológica de frugivoria e dispersão de sementes em florestas da Amazônia. Em conjunto com o grupo de pesquisadores(as) da Rede Amazônia Sustentável (RAS) que há mais de uma década estuda os impactos da degradação e da perda da floresta sobre biodiversidade da região, buscamos entender como este tipo de interação entre fauna e flora é impactada pela degradação e pelos incêndios florestais e quais são as consequências para a regeneração desses ambientes.

Há diversos métodos para estudar o processo de frugivoria e dispersão de sementes, desde métodos como captura de animais e análise estomacal ou das fezes, até métodos menos invasivos como os observacionais. Para conduzir este estudo, utilizamos dois métodos: observação direta através de caminhadas ao longo de trilhas e uso de armadilhas fotográficas próximo ao chão e na copa das árvores. Instalamos mais de 80 câmeras fotográficas (também chamadas de câmeras trap) em diferentes tipos de florestas em uma área que compreende mais de um milhão de hectares na região do oeste do estado do Pará (veja a figura abaixo). Por meio de observações diretas e vídeos, registramos aves e mamíferos se alimentando de frutos em florestas primárias desde as mais conservadas, ou seja, que nunca foram impactadas pelos humanos, até florestas que passaram por diferentes distúrbios  como a extração seletiva de madeira e incêndios florestais recentes ocorridos no El Niño de 2015-2016. Veja mais sobre a área de estudo neste artigo científico publicado em 2013.

Canto esquerdo inferior: destaque para a cidade de Santarém (círculo vermelho) e Amazônia brasileira (verde) e o estado do Pará (contorno branco). À direita: área de estudo representada por um retângulo branco estudo, florestas em verde e áreas queimadas no El Niño de 2015-2016 em vermelho. Figura adaptada de Withey et al. (2018; Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences).

Após a triagem de mais de 30 mil horas de observações diretas e gravações pelas armadilhas fotográficas em campo, registramos mais de 120 espécies de animais se alimentando de mais de 160 espécies de plantas.

Obtivemos registros raros de espécies ameaçadas como curica-urubu (Pyrilia vulturina) e de espécies que são consideradas como importantes dispersoras de sementes, como a anta (Tapirus terrestris), ambas registradas em áreas de floresta mais conservadas, indicando que essas florestas são essenciais para a permanência de espécies mais sensíveis e ameaçadas de extinção. Por outro lado, espécies de aves como a saí-azul (Dacnis cayana) e a cabeça-encarnada (Ceratopipra rubrocapilla), e mamíferos como o sagui-branco (Mico argentatus) e o macaco-prego (Sapajus apella), foram registradas até mesmo em florestas mais antropizadas. Isso significa que estas espécies, mesmo em áreas mais impactadas, são consumidoras frequentes de frutos e, portanto, são importantes para a manutenção da função de dispersão de sementes nessas florestas. Veja abaixo as imagens e vídeos destas espécies capturadas por armadilhas fotográficas.

À esquerda, instalação de armadilhas fotográficas na copa das árvores e observação direta com uso de binóculos. À direita, duas espécies frequentemente registradas consumindo frutos: macaco-prego (Sapajus apella) e saí-azul (Dacnis cayana). Fotos de Liana Rossi/RAS e Yan Gabriel Ramos/RAS.

Cabeça-encarnada (Ceratopipra rubrocapilla) se alimentando de uma espécie de planta pertencente à família Melastomataceae (mesma família da quaresma-roxa e pixirica). Vídeo de Liana Rossi/RAS.

Sagui-branco (Mico argentatus) se alimentando de uma espécie de planta pertencente à família Myrtaceae (mesma família da pitangueira e da jabuticabeira). Vídeo de Liana Rossi/RAS.

Distúrbios humanos associados a mudanças climáticas têm efeitos para além da perda de espécies, levando a alterações significativas nas comunidades de árvores e de animais dispersores. Essas mudanças podem levar à seleção de um determinado grupo de espécies de plantas e animais (aumentando suas populações) ou à extinção de outros que, por sua vez, resultam em importantes implicações para a dispersão de sementes. Dessa forma, pensando no futuro das florestas, ressaltamos a importância de se estudar as interações entre os animais e as plantas na Floresta Amazônica, pois podem fornecer informações fundamentais sobre modificações e resiliência dessas florestas frente aos impactos causados pelas ações humanas. 

Em breve traremos mais resultados deste trabalho aqui, no Blog do Conexões Amazônicas. Com esses resultados, pretendemos gerar informações essenciais para serem aplicadas em políticas públicas visando a conservação da Floresta Amazônica, além da incorporação aos planos de manejo e de recuperação de áreas de floresta degradadas.

Ciência se faz com parceria

Os vídeos e materiais apresentados neste texto são parte da pesquisa que vem sendo realizada por Liana durante o curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Biodiversidade, na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). A orientação é do Prof. Dr. Marco Aurélio Pizo e co-orientação das Profa. Dra. Joice Ferreira, Dra. Erika Berenguer e professores Dr. Jos Barlow, Dr. Alexander Charles Lees e Dr. Filipe França. Esta pesquisa é parte de um estudo mais amplo da Rede Amazônia Sustentável (RAS), que conta com o apoio financeiro do governo federal, através dos projetos “Avaliando a resiliência da biodiversidade e do funcionamento ecológico das florestas antropizadas do leste da Amazônia” (CNPq-CAPES 441659/2016-0 PELD-RAS), “RESFLORA: Resiliência Funcional em Florestas Amazônicas” (MCIC-CNPq 420254/2018-8 RESFLORA) e “SEM-FLAMA: Soluções para reduzir os impactos socioambientais do fogo em Florestas Amazônicas de Uso Sustentável” (CNPq-PrevFogo-IBAMA 441949/2018-5 SEM-FLAMA), coordenados pela Profa. Dra. Joice Ferreira da Embrapa Amazônia Oriental.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Conheça a Rede Amazônia Sustentável – RAS (Twitter, Website)

Barlow, J., Lennox, G. D., Ferreira, J., et al. (2016). Anthropogenic disturbance in tropical forests can double biodiversity loss from deforestation. Nature, 535(7610), 144-147. (acesse aqui)

Berenguer, E., Gardner, T. A., Ferreira, J., et al. (2018). Seeing the woods through the saplings: Using wood density to assess the recovery of human-modified Amazonian forests. Journal of Ecology, 106(6), 2190-2203. (acesse aqui)

Carlo, T. A., Morales, J. M. (2016). Generalist birds promote tropical forest regeneration and increase plant diversity via rare-biased seed dispersal. Ecology, 97(7), 1819-1831. (acesse aqui)

Moura, N. G., Lees, A. C., Andretti, C. B.,  et al. (2013). Avian biodiversity in multiple-use landscapes of the Brazilian Amazon. Biological Conservation, 167, 339-348. (acesse aqui)

Hawes, J. E., Vieira, I. C.G., Magnago, L., et al. (2020). A large-scale assessment of plant dispersal mode and seed traits across human-modified Amazonian forests. Journal of Ecology, 1-13. (acesse aqui)

Liana Chesini Rossi é bióloga, mestre em Biologia (UNISINOS). Doutoranda em Ecologia e Biodiversidade (UNESP). Trabalha na Amazônia desde 2016, vinculada ao projeto de pesquisa Rede Amazônia Sustentável (RAS). Atualmente, pesquisa o impacto da degradação das florestas sobre o processo de dispersão de sementes por animais na Amazônia.

Veja mais na Plataforma LattesResearchGate e Twitter.

Foto de Marizilda Cruppe/RAS.

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