Os extremos climáticos e as florestas aquáticas da Amazônia

19 de julho de 2022 | Tempo de leitura: 8 minutos

Por Angélica F. Resende

A mais urgente das crises atuais é a mudança do clima pois já extrapolamos os limites da nossa atmosfera e estamos sofrendo as consequências. As crescentes alterações que causamos no sistema climático global afetam profundamente a economia e a sociedade e ampliam outras crises ambientais como a hídrica e a da biodiversidade. A cada tonelada de carbono que emitimos para a atmosfera, atingimos mais um ponto de não retorno, desequilibramos mais ecossistemas, perdemos as chances de evitar maiores desastres e somos obrigados a encarar elevadas temperaturas, aumento dos níveis de oceanos e rios, derretimento de geleiras no Ártico e os catastróficos eventos extremos. No Brasil e em todo o mundo, cada vez que fechamos os olhos para a mudança do clima acordamos no dia seguinte com notícias trágicas, seja por tempestades e deslizamentos de terra em Petrópolis, inundações atípicas em Manaus, geadas atípicas ou reservatórios vazios no Sudeste, e muita seca e sofrimento no Nordeste.

Por vezes pensamos que os desastres estão concentrados nos locais mais alterados e que as regiões distantes e quase inabitadas da Amazônia estão naturalmente protegidas de tais extremos. Porém estamos enganados, nem mesmo o peixe que nunca viu um ser humano ou a árvore velha que reina na floresta mais distante daquela estão a salvo da mudança do clima, e é aqui que começa essa história.

Eu e o grupo de Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas (grupo MAUA) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e outros pesquisadores, descobrimos que árvores muito velhas de ambiente único, na interface água e terra (sujeito a uma fase aquática e outra terrestre), mesmo longe, são afetadas pelas pessoas. Mas antes das árvores, vamos falar dos rios da Amazônia, pois eles são a razão de tudo: os grandes rios da Amazônia Central possuem uma dinâmica de oscilação dos seus níveis, onde uma vez por ano os rios sobem cerca de 10 m de altura em relação ao nível mais baixo, e depois descem devido ao regime de chuvas. As florestas que margeiam os grandes rios são chamadas florestas alagáveis, pois elas são adaptadas a essa dinâmica. Mais do que isso, muitas espécies que ocorrem apenas nesses ambientes dependem da oscilação anual e previsível (fase aquática e fase terrestre) para crescerem e se reproduzirem. E a fauna da floresta amazônica também depende tanto da dinâmica do rio quanto dos frutos, flores, folhas e abrigo que as florestas alagáveis fornecem.

Hoje vamos falar da espécie Eschweilera tenuifolia da família da castanheira (ou castanha-do-Pará), que é chamada “macacarecuia” ou mesmo “cuieira”, conta do fruto em forma de cuia, e produz castanhas que a fauna adora. Dentre as árvores das florestas alagáveis, as macacarecuias são as que vivem no ambiente mais peculiar, que é a parte mais próxima do rio, ou seja, a parte com a coluna d’água mais alta na época da cheia. Portanto, as árvores passam até 10 meses debaixo da água com um curto período seco propício para “respirar” (sem privações de oxigênio como na fase aquática) e crescer. Esse é talvez o ambiente mais extremo que uma espécie arbórea na Amazônia consegue chegar. E depois de milhares de anos de adaptação e evolução, as macacarecuias começaram a dominar esse ambiente (vamos chamá-lo de região de ‘cotas super baixas’), veja na figura abaixo como só dá ela por ali.

Devido ao aumento dos níveis dos oceanos, o Rio Amazonas subiu no último século, assim como os rios que são barrados pelo Amazonas também subiram cerca de um metro (veja mais sobre isso e outros efeitos da Mudança do Clima nesta reportagem). Além deste aumento gradual e permanente nos níveis, também causamos nesses ambientes únicos um aumento exacerbado na frequência de eventos de cheias atípicas e secas severas (os famosos eventos extremos). Na minha tese de doutorado (sob orientação do Dr. Jochen Schöngart), nós estudamos as florestas alagáveis de águas pretas (igapós) nas bacias do Rio Uatumã (que desagua diretamente no Rio Amazonas) e do Rio Jaú (este deságua no Rio Negro, que se junta ao Rio Amazonas). Os igapós do baixo Rio Uatumã sofreram duplamente nas últimas décadas, pois foram acometidos por mudança do clima, e também dizimados pela instalação de uma hidrelétrica, a tão controversa Balbina (vale a pena entender melhor essa história aqui) que além do enorme desastre imposto pela criação de um lago artificial (acima da barragem) e interrupção do fluxo de fauna e flora, ainda afetou enormemente as comunidades naturais abaixo da barragem (resumo da obra), e causou a mortalidade em massa de florestas, por alterar o pulso de inundação, tornando-o imprevisível (entenda melhor nessa reportagem e na figura abaixo).

Árvores mortas à jusante da hidrelétrica de Balbina no Rio Uatumã, floresta monodominante de macacarecuias na ‘cota super baixa’. Foto: Angélica Resende (todos os direitos reservados).

As florestas monodominantes de macacarecuias estão intimamente ligadas ao ‘subir e descer’ dos rios, e estão nas ‘cotas super baixas’. No último século o rio subiu e algumas árvores deixaram de ter aquele pequeno intervalo para “respirar” e crescer fora d’água (fase terrestre) e por isso lentamente morreram, outras continuaram vivas porque estavam em uma posição mais favorável, um pouco mais altas que as áreas afetadas pela elevação dos rios.

Porém, com a mudança do clima, mais árvores estão morrendo porque os eventos extremos estão cada vez mais frequentes, como alguns anos de cheias prolongadas no início dos anos 70 e diversos anos de secas severas como aquelas de 1982/83, 1997/38 e também 2015/16. Nos anos de secas severas, além de ficarem propensos à mortalidade pela seca em si, os igapós também podem pegar fogo.

Todas essas constatações só nos levam a uma conclusão, a de que os igapós, e em especial as florestas de macacarecuias, são ambientes de alta importância ecológica e extremamente susceptíveis à mudança do clima e também às alterações antrópicas no pulso de inundação. Não existe forma de protegê-los dos efeitos deletérios da mudança do clima que não seja pela urgente neutralização das nossas emissões e estabilização do sistema climático.

#FicaADica: Junte-se a iniciativas globais, nacionais, estaduais, ou locais de enfrentamento da mudança do clima (ou ação climática), e não deixe de fazer a sua parte em cada decisão.

Ciência se faz com parceria

Este projeto foi desenvolvido no Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia (INPA) durante 2015-2019 no doutorado de Angélica Resende em Botânica, sob orientação do Dr. Jochen Schongart e coorientação dos doutores Thiago S. F. Silva e Susan Trumbore, em parceria com o grupo MAUA e Instituto Max Planck de Biogeoquímica. Foi financiado pelo CNPQ, FAPEAM, e CAPES.

 

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Artigos científicos:

Resende et al. 2019. Massive tree mortality from flood pulse disturbances in Amazonian floodplain forests: The collateral effects of hydropower production. Science of The Total Environment, 659, 587-598 (acesse aqui)

Resende et al. 2020. Flood-pulse disturbances as a threat for long-living Amazonian trees. New Phytol, 227, 1790-1803 (acesse aqui)

Atlas interativo:

IPCC WGI Interactive Atlas: Regional information (Advanced) (acesse aqui)

Reportagens:

National Geographic. Mudanças climáticas e atividades humanas já ameaçam áreas inundáveis da Amazônia (acesse aqui)

((o))eco. Balbina: boa de metano, ruim de energia (acesse aqui)

((o))eco. Efeito colateral de hidrelétrica, árvores centenárias morrem no leito do rio (acesse aqui).

VIDAmazônica. Estudo mostra impactos de 35 anos da hidrelétrica de Balbina em florestas de igapó da Amazônia (acesse aqui)

Vídeo:

O que é ação climática? A ativista brasileira Paloma Costa explica (acesse aqui)

Website:

Grupo MAUA – Ecologia, Monitoramento e Uso  Sustentável de Áreas Úmidas (acesse aqui)

Angélica F. Resende passou uma década estudando a Amazônia (no INPA e na Embrapa Amazônia Oriental) e principalmente os distúrbios em áreas úmidas (fogo, hidrelétrica, mudanças climáticas). Hoje continua colaborando com pesquisas na Amazônia, porém, como pesquisadora de pós-doutorado no laboratório de Silvicultura Tropical (ESALQ/USP) trabalhando com o monitoramento da restauração florestal por sensoriamento remoto para resolver problemas práticos ligados a políticas públicas e conservação da Mata Atlântica.

Veja mais na Plataforma Lattes e ResearchGate.

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