Tupi or not Tupi: migrações pré-históricas e atuais na América do Sul
18 de março de 2021 | Tempo de leitura: 8 minutos
Por Rafael Bisso-Machado
Dando continuidade à pesquisa sobre povos nativos americanos, apresentada no nosso blog no texto Vestígios do passado: a história dos nativos americanos amazônicos revelada através da genética, aqui veremos como esses povos se expandiram e migraram no território brasileiro. Apresentaremos os resultados de uma pesquisa que foi publicada na revista científica American Journal of Physical Anthropology em 2013 (acesse o artigo aqui), cujo objetivo foi elucidar a expansão dos povos nativos americanos falantes de Tupi e Je através de análises de características genéticas, geográficas e linguístiscas.
As populações nativas americanas presentes no Brasil mostram uma diversidade linguística que inclui entre 154 e 170 línguas agrupadas em cerca de 20 grandes troncos linguísticos. A palavra “tronco” vem da ideia de uma árvore, a qual pode conter inúmeros galhos que se ramificam a partir de um tronco central. Tronco linguístico é um conjunto de famílias linguísticas que têm a mesma origem. O idioma Português, por exemplo, pertence ao tronco Indo-Europeu (família Latina). O Português se parece muito com o Espanhol e com o Francês, porque pertencem ao mesmo tronco linguístico. Em território brasileiro existem dois grandes e principais troncos linguísticos nativos: Tupi e Je.
O tronco Tupi é caracterizado por um grande número de falantes que habitam uma ampla área geográfica da América do Sul. O Tupi-Guarani é o seu ramo mais abrangente. A língua Guarani atualmente apresenta uma grande distribuição geográfica, com falantes no Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Venezuela e Guiana Francesa. Vale ressaltar que os falantes do Guarani alcançaram os limites mais ao sul da dispersão Tupi. A respeito da origem e a expansão do Tupi, sabemos que um centro comum de origem amazônica e a diferenciação Tupi ocorreu por meio de processos históricos e culturais distintos. A diferenciação Tupi decorre do surgimento de várias línguas dentro do tronco Tupi a partir de uma língua ancestral comum, o chamado proto-Tupi. Informações linguísticas sugerem que a origem Tupi ocorreu na margem sul do Rio Amazonas, próximo à bacia do Madeira-Guaporé, enquanto os dados arqueológicos apontam para uma região mais ao norte, na confluência dos rios Madeira e Amazonas. Dados morfológicos também indicam uma origem amazônica para o grupo Tupi.
A expansão dos falantes do Tupi, que ocorreu cerca de 6.000 a 2.000 anos atrás, é considerada uma das maiores e mais bem-sucedidas migrações identificadas em nível continental. Essas pessoas eram conhecidas pela fabricação de utensílios de cerâmica e foram descritas como agricultores qualificados. Os falantes do Tupi transformaram com eficiência a floresta em áreas produtivas. Devido a essas características, o melhor termo para esses deslocamentos populacionais não seria migração e sim expansão, conquistando novas regiões sem abandonar a região anterior. O motivo da saída do povo Tupi da fronteira com a Amazônia, no entanto, pode ter sido por motivos múltiplos: pressões demográficas e/ou socioculturais, busca por novas terras cultiváveis e/ou secas prolongadas.
A origem do tronco linguístico Je, ao contrário, acredita-se ter ocorrido em uma área entre os rios São Francisco e Tocantins e pode ter se originado mais ou menos na mesma época que o Tupi. Alguns pesquisadores sugerem que Tupi e Je teriam se separado a partir de uma língua ancestral em comum cerca de 7.000 a 5.000 anos atrás. A maioria das comunidades de língua Je está localizada nas regiões central e oriental do planalto brasileiro, e um movimento importante para o sul ocorreu cerca de 3.000 anos atrás. No entanto, a dispersão dos Je parece ser diferente do padrão seguido pelos Tupi.
Mas já há alguns anos a genética somou-se a esses estudos para buscar um maior detalhamento dessas migrações pré-históricas. Dados genéticos têm sido então usados para mostrar uma visão mais abrangente de como teria ocorrido a disseminação dos povos Tupi e Je na América do Sul.
Esses estudos genético-linguísticos (como visto em Ramallo et al. 2013) determinaram que Tupi e Je se expandiram de maneiras diferentes. Enquanto o Tupi se expandiu seguindo um padrão radial (dispersando igualmente em todas as direções a partir de um centro de origem), com isolamento gerado pela distância (a diferenciação genética entre os indivíduos aumenta à medida que as distâncias geográficas aumentam); o Je apresenta um modo de dispersão mais complexo/irregular.
Essa correlação entre evolução genética e linguística pode ser explicada pela história das populações. Duas populações que se separam começam a mostrar diferenças tanto de genes como de línguas com o passar do tempo. É razoável assumir que quanto maior o isolamento e mais tempo se passar desde a separação entre elas, maiores serão as divergências. Para um melhor entendimento de como interpretar árvores genéticas e linguísticas, acesse este material do Universo Racionalista.
Estes resultados reforçam que a utilização de dados genéticos e linguísticos, em conjunto, permite resgatar como ocorreram as migrações pré-históricas dos povos nativos americanos. Isto tem uma importância ainda maior com a iminente extinção de centenas de línguas nativas americanas. No próximo texto veremos como a variabilidade linguística, juntamente com a geografia, pode ter influência na variabilidade genética das populações nativas americanas.
Ciência se faz com parceria
O texto apresentado é resultado de pesquisas que vêm sendo realizadas por Rafael Bisso Machado em colaboração com pesquisadores(as) do Brasil, Argentina, Espanha, EUA e Peru. Estudos realizados desde quando Rafael realizou seu mestrado. Atualmente Rafael realiza pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGBM-UFRGS). Cabe salientar o nome dos pesquisadores(as) que desempenharam papel direto nas pesquisas salientadas acima no papel de orientadores(as)/supervisores(as) do autor deste texto: Maria Cátira Bortolini, TábitaHünemeier, Nelson Jurandi Rosa Fagundes. Menção especial ao Professor Francisco Mauro Salzano (in memoriam) que foi uma inspiração para estudar a evolução das populações nativas americanas. Estas pesquisas contaram com o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Bisso-Machado, R. (2021). Vestígios do passado: a história dos nativos americanos amazônicos revelada através da genética. Conexões Amazônicas, 14 de jan. de 2021. (acesse aqui)
Bisso-Machado, R., Ramallo, V., Salzano, F. M., Bortolini, M. C. (2017). A dispersão do Homo sapiens e o povoamento inicial da América. In: Madrigal, L., González-José, R. (Org.). Introdução à Antropologia Biológica. (1st ed.). 464-492. (acesse aqui)
Cavalli-Sforza, L. L., Piazza, A.,Menozzi, P., Mountain, J. (1988). Reconstruction of human evolution: Bringing together genetic, archaeological and linguistic data. Proceedings of the National Academy of Sciences, 85(16): 6002-6006. (acesse aqui)
Site Povos Indígenas no Brasil, que faz parte do portal do Instituto Socioambiental (ISA), com informações sobre os povos e a temática indígena. (acesse aqui)
Ramallo, V., Bisso-Machado, R., Bravi, C., Coble, M.D., Salzano,F.M., Hünemeier, T., Bortolini, M.C. (2013). Demographic expansions in South America: enlightening a complex scenario with genetic and linguistic data. American Journal of Physical Anthropology, 150: 453-463. (acesse aqui)
Schmitz, P. I. (1997). Migrantes da Amazônia: a tradição Tupi-Guarani.In: Kern AA (org) Arqueologia pré-histórica do Rio Grande do Sul. 2ª edição, Mercado Aberto, pp. 295-330.
Schmitz, P. I. (2006). Pré-história do Rio Grande do Sul: Arqueologia do Rio Grande do Sul, Brasil. Instituto Anchietano de Pesquisas, UNISINOS. (acesse aqui)
Rafael Bisso-Machado é biólogo (UFRGS), mestre e doutor em Genética e Biologia Molecular (UFRGS). Fez pós-doutorado no Departamento de Genética da UFRGS e foi professor adjunto na UdelaR (Uruguay). Atualmente é pós-doutorando no PPGBM-UFRGS. Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.