Vestígios do passado: a história dos nativos americanos amazônicos revelada através da genética
14 de janeiro de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos
Por Rafael Bisso-Machado
A
ciência há muito tempo vem buscando respostas sobre as origens e a diversidade dos seres humanos. Minha pesquisa com populações nativas americanas amazônicas (também chamadas de ameríndias) faz uso da genética em um contexto multidisciplinar, agregando dados da linguística, antropologia e paleoantropologia. Ela tem como objetivo o esclarecimento da origem dessas populações, dos padrões de migração pré-colombianos e atuais, e de sua variabilidade genética (correlacionada com padrões culturais e variáveis do ambiente). O interesse por essas populações também se dá pelo fato de muitas delas manterem até os dias atuais um modo de vida caçador-coletor, com alguma agricultura iniciante, típico dos primórdios da humanidade. Ao se estudar os povos nativos americanos amazônicos, por analogia, pode-se inferir sobre a trajetória evolutiva do Homo sapiens.
A Amazônia inclui territórios pertencentes a nove países: Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Aproximadamente 715 mil ameríndios vivem em território brasileiro, desses, 306 mil vivem na Amazônia. Segundo o linguista Aryon Rodrigues, há cerca de 240 línguas faladas na Amazônia. De acordo com a UNESCO, 190 das línguas faladas no Brasil estão em perigo de extinção, a maioria delas faladas na Amazônia.
Buscando determinar a origem das atuais populações nativas americanas amazônicas, verificou-se que, há aproximadamente 23 mil anos, indivíduos vindos do Leste Asiático vieram em direção ao continente americano e chegaram até a Beríngia (atual Estreito de Bering). Ali nessa região eles viveram por cerca de cinco mil anos antes de entrar no continente americano. Detectou-se que uma grande onda migratória para as Américas ocorreu há aproximadamente 16 mil anos. Três fluxos menores teriam ocorrido posteriormente a esse período (veja mais informações aqui). As estimativas de quantos indivíduos teriam vindo nessa primeira grande onda migratória que entrou no continente americano variam bastante, desde poucas centenas até cinco mil indivíduos, dependendo do tipo de análise que foi utilizada.
Colonização do continente americano pelo Homo sapiens. a) Populações de nativos americanos divergindo das populações do Leste Asiático há 23 mil anos na Beríngia. b) Fluxo de migração para as Américas ocorrendo há 16 mil anos. Modificado de Bisso-Machado e Fagundes (2019).
O que agora é conhecido como Estreito de Bering era uma massa de terra de cerca de 1 milhão de km² chamada Beríngia, que permaneceu exposta durante a maior parte da última era do gelo, quando o nível do mar estava 120 metros mais baixo do que hoje. Apesar de próxima ao círculo ártico, a Beríngia não foi coberta por geleiras, mesmo durante a última era do gelo (25-15 mil anos atrás), permitindo a ocupação efetiva por humanos, especialmente em áreas cobertas por tundra arbustiva. Os humanos podem ter chegado a esta área há mais de 30 mil anos. Sua configuração como uma ponte natural entre a Ásia e as Américas coloca a Beríngia em uma posição estratégica para o povoamento das Américas. No entanto, está ficando cada vez mais claro que a Beríngia era muito mais importante do que um mero corredor de passagem. Os humanos teriam vivido naquela região por pelo menos cinco mil anos antes de adentrarem o continente Americano.
Os estudos que determinaram a origem dos nativos americanos amazônicos fizeram uso de duas porções específicas de nosso DNA: o DNA mitocondrial e o cromossomo Y. O DNA mitocondrial é encontrado nas mitocôndrias, organelas responsáveis pela geração de energia nas células. E o cromossomo Y é encontrado nos indivíduos homens de nossa espécie.
O DNA mitocondrial e o cromossomo Y possuem uma característica principal que os torna importantes para esses estudos: eles são passados em bloco ao longo das gerações (veja na figura abaixo). Lembrando que quando dois indivíduos de nossa espécie geram um filho, seus DNAs se misturam para gerar esse filho. Mas o DNA mitocondrial e o cromossomo Y não passam por essa mistura, passando intactos de geração em geração.
O DNA mitocondrial e o cromossomo Y ao sofrerem mutações dão origens a matrilinhagense patrilinhagens, respectivamente, que ao serem rastreadas de volta no passado, revelam que as todas as linhagens presentes em populações modernas descendem de uma única linhagem que fazia parte de um pool gênico ancestral. Sendo úteis, assim, para reconstruir a história genética de um povo.
Padrão de herança do cromossomo Y e DNA mitocondrial. O cromossomo Y (azul) é transmitido apenas de homem para homem. O DNA mitocondrial (vermelho) é transmitido das mulheres para os filhos de ambos os sexos, mas apenas as mulheres o transmitem para a próxima geração. Modificado de The Genographic Project.
Estudos genéticos em populações ameríndias amazônicas são muito importantes para uma melhor compreensão de sua história de como genes e cultura evoluíram em conjunto. Há muito mais informações necessárias para seguirmos evoluindo neste campo de pesquisa multidisciplinar. Em breve traremos mais resultados sobre as pesquisas realizadas nessa área, como padrões de migração pré-históricos e atuais, variabilidade genética e coevolução gene-cultura de nativos americanos amazônicos.
Ciência se faz com parceria
O texto apresentado é resultado de pesquisas que vêm sendo realizadas por Rafael Bisso Machado em colaboração com pesquisadores do Brasil, Argentina, Espanha, EUA e Peru. Estudos realizados desde quando Rafael realizou seu mestrado. Cabe salientar o nome dos pesquisadores que desempenharam papel direto como orientadores/supervisores do autor deste trabalho: Maria Cátira Bortolini, Tábita Hünemeier, Nelson Jurandi Rosa Fagundes. Menção especial ao Professor Francisco Mauro Salzano (in memoriam), o qual foi uma inspiração para o estudo da evolução das populações nativas americanas. Estas pesquisas contaram com o apoio financeiro do governo federal, através da CAPES e CNPq.
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Bisso-Machado, R., & Fagundes, N.J.R. (2019). Homo sapiens Dispersal and the Peopling of the Americas. In: O’Rourke, D.H. (Org.). A Companion to Anthropological Genetics. (1st ed.). Wiley-Blackwell, 165-185. (acesse aqui)
Bisso-Machado, R., Ramallo, V., Salzano, F.M., & Bortolini, M.C. (2017) A dispersão do Homo sapiens e o povoamento inicial da América. In: Madrigal, L., & González-José, R. (Org.). Introdução à Antropologia Biológica. (1st ed.). 464-492. (acesse aqui)
National Geographic – Genographic Project, Geno DNA Ancestry Kit. (acesse aqui)
ISA – Instituto Socioambiental (2012). IBGE detalha dados sobre povos indígenas. (acesse aqui)
Rafael Bisso-Machado é biólogo (UFRGS), mestre e doutor em Genética e Biologia Molecular (UFRGS). Fez pós-doutorado no Departamento de Genética da UFRGS e foi professor adjunto na UdelaR (Uruguay). Atualmente é pós-doutorando no PPGBM-UFRGS.
Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.