Peixe assado e a regeneração da várzea – qual a conexão?
08 de junho de 2022 | Tempo de leitura: 6 minutos
By Daniel Tregidgo
Fale sobre os povos da Amazônia para muitas pessoas e naturalmente surgirão imagens rurais de comunidades de subsistência no meio da floresta verde e densa. Não faz muito tempo que esta imagem foi relativamente representativa da maioria da população – no ano 1950, ¾ da população da Amazônia brasileira ainda moravam nas áreas rurais. Mas, hoje em dia, ¾ (ou seja, cerca de 18 milhões de pessoas) moram em áreas urbanas na Amazônia.
Para alimentar mais pessoas, necessitamos mais terra para plantação e criação, e/ou mais animais para pescar e caçar. Porém a urbanização da população também pode modificar o perfil de consumo. Assim, para entender o impacto ambiental de alimentar as grandes cidades amazônicas, fomos para o Rio Purus, que é o rio mais importante na pesca para Manaus – a maior cidade da Amazônia e onde se come muito peixe! No Purus, fizemos entrevistas com ribeirinhos sobre mais de 800 pescarias.
Pesca artesanal do pirarucu (Arapaima gigas) em um lago do Rio Purus. Foto: Daniel Tregidgo
A bacia amazônica contém a maior diversidade de água doce no mundo, com mais do que 2.400 espécies de peixes nativos e uma estimativa de mais 1.000 espécies ainda para serem descobertas e descritas. Os pescadores que entrevistamos reportaram a pesca de 80 espécies (que corresponde ao dobro do número de peixes nativos de água doce do Reino Unido!). Porém mais da metade da biomassa foi representada por somente 4 espécies: pacu (Mylossoma albiscopum), aruanã (Osteoglossum bicirrhosum), tambaqui (Colossoma macropomum) e pirarucu (Arapaima gigas).
E a pesca para a venda urbana ficou ainda mais seletiva, isto é, o ribeirinho costuma comer bem mais espécies de peixes (mais diversidade!) do que o manauara (ou seja, quem é natural ou habitante de Manaus).
Além disso, as espécies de peixes mais consumidas na cidade, como tambaqui, pirarucu e pacu, foram muito mais pescadas quando as comunidades tinham acesso aos barcos grandes (os chamados “recreios”) que sobem o rio, deixando gelo nas comunidades para guardar os peixes, e que depois voltam para as comunidades para comprar os peixes e levar para venda na cidade.
Um pescador no Rio Purus, Amazonas, pegando aruanã (Osteoglossum bicirrhosum), tucunaré (Cichla monoculus), curimatã (Prochilodus nigricans) e piranha caju (Pygocentrus nattereri). A demanda do mercado urbano e o acesso a ele influencia o que o ribeirinho pesca. Foto: Daniel Tregidgo
Como sabemos que a pesca é muito seletiva para poucas espécies, nós investigamos se a pressão de pesca resultante poderia ter um impacto na ecologia dos peixes. Focamos no peixe favorito da região – o tambaqui – também um peixe super importante para o funcionamento da ecologia da floresta, além de ser muito gostoso quando assado!
Mais próximo a Manaus, achamos uma redução de 50% tanto no tamanho do tambaqui pescado, quanto na facilidade de pescar (ou seja, quantos quilos de tambaqui é possível pescar por hora, chamado também de “captura por unidade de esforço”). O efeito da sobrepesca foi evidente em locais muito distantes de Manaus – até 1.000 km de distância ao longo do rio. Percebemos que os ribeirinhos sabem muito bem disso, como os pescadores mais perto de Manaus que nem se deram ao trabalho de levar uma rede de pesca (chamada “malhadeira” na região) com malha grande, sabendo que não iriam encontrar tambaqui grande.
Quanto mais perto estamos de Manaus, mais difícil de pescar e menor é o tambaqui. Infográfico: Filipe França
Muitos peixes na várzea nadam no dossel da floresta, comem frutas e plantam árvores através de suas fezes!
Grandes áreas da Amazônia Central são várzeas – florestas inundadas por água por até metade do ano. Os peixes e árvores da região evoluíram juntos para aproveitar esse fenômeno, e esses “peixes da floresta” nadam no dossel da floresta comendo frutas, o que o povo local diz que dá o sabor gostoso do peixe. Os peixes também consomem as sementes das frutas, e assim quando eles fazem cocô, eles plantam árvores! Quase não existe animal no mundo que consegue dispersar sementes mais distante do que o tambaqui (mais de 5 km), levando sementes mais longe que muitas aves, macacos, veados e até elefantes.
Tambaqui (Colossoma macropomum) comendo uma semente. Foto: Michael Goulding.
Devido à limitação do tamanho de sua boca, somente indivíduos de tambaqui grandes conseguem dispersar frutas com sementes grandes. Pesquisadores(as) especialistas em sementes utilizaram nossos dados sobre tambaqui, e calcularam que os maiores tambaquis pescados longe de Manaus conseguem consumir frutas de 6 cm (ingerindo a semente intacta) – representando quase todas (90%) espécies da árvores de várzea do Rio Purus. Porém os maiores tambaquis capturados mais perto de Manaus somente conseguem consumir frutas de 4,4 cm. Como as plantas com grandes sementes na várzea normalmente não flutuam e precisam de peixes grandes para dispersar sementes, a sobrepesca do tambaqui poderia inibir a regeneração da várzea.
Temos que parar de comer peixe? Eu acho que não – além de ser gostoso e culturalmente importante, o peixe é a maior fonte de proteína e de vários outros nutrientes para muitas pessoas na Amazônia. Trocar peixe por carne de boi também não é uma boa opção, dado que a pecuária é responsável por 80% do desmatamento na Amazônia. Até a criação de frango e peixe (aquicultura) também cria outros grandes impactos ambientais, e os produtos geralmente têm menos qualidade nutricional.
Poderíamos reduzir a pressão sobre as poucas espécies mais consumidas comendo uma maior diversidade de peixes, o que também é importante para a ingestão adequada de vários nutrientes essenciais. Outro ponto importante é respeitar o período de defeso dos peixes (período em que é proibido pescar determinadas espécies de peixes) e também proteger os peixes no seu período de reprodução. O manejo comunitário de peixe também é uma excelente alternativa, pois nos permite continuar a comer os nossos peixes favoritos de um jeito sustentável!
Science is done collaboratively
Os resultados apresentados neste texto são da pesquisa realizada por Daniel Tregidgo durante o curso de doutorado com diploma de dupla-titulação entre o Programa de Pós-Graduação de Ecologia Aplicada na Universidade Federal de Lavras e a Lancaster University (Reino Unido). A orientação foi de Luke Parry, Paulo Pompeu, e Jos Barlow. Esta pesquisa contou com o apoio do Natural Environment Research Council do Reino Unido.
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Artigos científicos:
Anderson et al. 2011. Extremely long-distance seed dispersal by an overfished Amazonian frugivore. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 278(1723), 3329–3335. (Link)
Costa-Pereira et al. 2018. Defaunation shadow on mutualistic interactions. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 115(12), E2673–E2675. (Link)
Heilpern et al. 2021. Substitution of inland fisheries with aquaculture and chicken undermines human nutrition in the Peruvian Amazon. Nature Food, 2(3), 192–197. (Link)
Gonçalves et al. 2018. The Amazonian Giant: Sustainable Management of Arapaima (Pirarucu). Tefé, AM: IDSM. (Link)
Tregidgo et al. 2017. Rainforest metropolis casts 1,000-km defaunation shadow. Proceedings of the National Academy of Sciences, 114(32), 8655–8659. (Link).
Tregidgo et al. 2021. Urban market amplifies strong species selectivity in Amazonian artisanal fisheries. Neotropical Ichthyology, 19(3), 1–20. (Link).
Reportagens:
Estadão. Demanda por Alimentos em Manaus afeta fauna amazônica em raio de mil quilômetros. (Link)
Globo. Demanda por comida nas cidades da Amazônia impacta fauna da região. (Link)
Website:
Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM). Defeso/Declaração de estoque de pescado. (Link)
Daniel Tregidgo é doutor em Ecologia Aplicada da Universidade Federal de Lavras e PhD em Environmental Science da Lancaster University (Reino Unido). Atualmente trabalha no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá no Grupo de Pesquisas em Ecologia de Vertebrados Terrestres, na linha de segurança alimentar e ecologia nas comunidades ribeirinhas.
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