Árvores, sementes e plântulas da várzea amazônica têm memória?

26 de novembro de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Denise Garcia de Santana

A palavra memória tem origem no latim e significa “aquele que se lembra, que se recorda” e entre os vários conceitos e definições é “aquilo que ocorre como resultado de experiências vividas”. Árvores, sementes e plântulas também armazenam e expressam suas experiências vividas nas florestas e, portanto, têm memória. 

Nas florestas de várzea amazônica, as árvores permanecem inundadas no período das cheias dos rios e, para minimizar o estresse causado pelos baixos teores de oxigênio dissolvido na água, reduzem o metabolismo e “adormecem”. Essa é apenas uma das estratégias resultantes das experiências acumuladas pelas árvores para tolerar os anuais e previsíveis ciclos de inundação e, portanto, das suas memórias.

Na busca por vestígios de memória deixados por essas árvores aos seus descendentes, as sementes, pesquisas conduzidas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá acompanharam algumas espécies desde o momento da dispersão das sementes nos cursos de água, passando pelo período de flutuação/submersão (fase aquática) até a germinação e a formação da plântula na fase terrestre. Entre as espécies, duas apresentam comportamentos bem distintos, porém inundados de memória.

Assacú (Hura crepitans) é uma espécie de várzea que produz a madeira flutuante de maior importância da bacia amazônica. Sob o efeito da memória materna, sementes da espécie se tornam exímias flutuantes (hidrocoria), porém antes de atingirem o rio são lançadas a grandes distâncias pelos frutos explosivos, mecanismo conhecido como autocoria. Frutos de louro-inamuí (Ocotea cymbarum) se desprendem da planta-mãe, afundam e são depositados no leito dos rios. Esse mecanismo conhecido como barocoria (queda em função do peso) reduz a distância de dispersão e a germinação tende a ocorrer próxima a planta-mãe, o que não é uma boa estratégia. Para ampliar a área de dispersão, o louro conta com o peixe tambaqui (ictiocoria) e para “fisgá-lo” produz frutos com polpa atrativa. Após ingerir os frutos, o tambaqui consome a polpa e defeca as sementes em áreas distantes da planta-mãe. Ao que parece, louro e tambaqui compartilham memórias.

Assacú (Hura crepitans L. -Euphorbiaceae). A figura apresenta: toras em flutuação, detalhe para as colorações do cerne, branco e vermelho; flores feminina e masculina; fruto imaturo (verde); cápsula explosiva, próximo da dispersão; semente; e fruto aberto, indicando que a cápsula já explodiu. Fotos: Denise Santana.

Louro-inamuí (Ocotea cymbarum Kunth. – Lauraceae). A figura apresenta: detalhe dos galhos pendentes no rio; bela floração; frutos imaturos (verdes); frutos em processo de maturação; fruto maduro, detalhe da polpa arroxeada, pronto para afundar no rio. Fotos: Denise Santana.

Mas, o que fazem as sementes de assacú e de louro nos cursos de água? Assim como as árvores, elas “adormecem”. A dormência das sementes também é induzida pelos baixos teores de oxigênio dissolvido na água, o que as impede de germinar, impedimento esse fundamental porque a plântula seria incapaz de se estabelecer em solo inundado. Essa estratégia é decorrente de experiências vividas pela planta-mãe, enquanto semente e enquanto árvore, portanto, da memória.

A dormência das árvores e das sementes na fase aquática da várzea amazônica não é sinal de sonolência ou torpor. Nessa fase difícil, ambas fazem um verdadeiro “esquenta” se preparando para a fase terrestre. Incapaz de germinar, louro aproveita a fase ruim para se livrar da polpa e abrir fendas longitudinais nas sementes, anunciando que está pronto para germinar. Assacú mantém bravamente suas estruturas de flutuação, porque sem elas a taxa de germinação é reduzida (veja a figura abaixo). Ambas aguardam dias melhores, a fase terrestre. As sementes “sabem” que precisam germinar e formar plântulas rapidamente na fase terrestre, que é curta e um novo ciclo de inundação se aproxima. Isso é que é ter memória boa! 

Por um mecanismo conhecido como escape, decorrente de memória, plântulas de assacú desenvolvem uma haste alongada assim que emergem, permitindo manter suas folhas acima do nível da água por mais tempo à medida que novo ciclo de inundação avança (veja a figura abaixo). A submersão completa da plântula reduziria a taxa fotossintética aumentando o risco de morte. Pelo mesmo motivo, plântulas de louro também desenvolvem haste alongada, mas a espécie tem mais uma “carta na manga”. Para aumentar a chance de sobrevivência, cerca de 20% das plântulas apresentam mais de uma haste, caso a principal morra.

A figura apresenta: semente de louro sem a polpa; fendas indicando o início do processo de germinação; início da formação da plântula de louro; perda das estruturas de flutuação de assacu; detalhe das plântulas jovens de assacu e louro com cerca de 60 cm de altura 75 dias após germinarem; hastes de louro saindo da mesma semente. Fotos: Denise Santana.

A memória não é um atributo particular das espécies de várzea. Com maior ou menor intensidade e independente do ambiente, todas as espécies vegetais apresentam características intrinsecamente relacionadas às suas vivências e essas características são de conhecimento da ciência. No entanto, a singularidade das florestas de várzea, sua rigidez, mas também suas nuances e sutilezas, transformam árvores, sementes e plântulas em modelos de manifestação de memória.

Science is done collaboratively

Sobre referências, faço um agradecimento especial a um jovem pesquisador que nos idos de 86 e 87 na antiga Escola Superior de Agricultura de Lavras apresentou no Encontro de Iniciação Científica a palestra “A natação dos peixes”. Me retrato por não me recordar do nome do pesquisador, porém quero registrar que essa palestra povoou minha memória e refletiu nas pesquisas sobre memória de sementes da várzea amazônica apresentadas nesse texto. Sobre parcerias, a pesquisa é fruto de um acordo de cooperação entre pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em especial, do Grupo de Pesquisa em Ecologia Florestal. Financiadores: Bolsa de pós-doutorado concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e recursos para o projeto financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM)

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No livro “A vida secreta das árvores”, o autor Peter Wohlleben expande para o reino vegetal características até então consideradas exclusivas do reino animal.

Pesquisas avançadas sobre memória hídrica de sementes da caatinga: consulte os artigos do pesquisador Marcos Vinicius Meiado da Universidade Federal do Sergipe (Instagram: @mvmeiado; Facebook: Marcos Vinicius Meiado)

Denise Garcia de Santana é professora e pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), agrônoma (UFLA), pós-doutora em sementes florestais (Museu Paraense Emílio Goeldi) e desde 2019 desenvolve pesquisas sobre sementes de espécies da várzea amazônica no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM). Veja mais na Lattes.

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