Corpo vicinal em situação de questão agrária na Transamazônica Paraense

28 de julho de 2021 | Tempo de leitura: 8 minutos

Por Andrey Henrique Figueiredo dos Santos

Vocês veem como estou escrevendo à vontade?
Sem muito sentido, mas à vontade? Que importa os sentidos?
O sentido sou eu.
(Clarice Lispector, 2004)

PREPARANDO O TERRENO

Inicio esse diálogo estabelecendo uma pergunta provocadora: Quando se fala em Transamazônica (BR-230), o que vem à mente? Uma possível resposta seria: Uma paisagem paralisada há décadas, com carros e caminhões atolados numa estrada enlameada, onde tratores abrem uma floresta vazia (de pessoas).

A Transamazônica é fruto do projeto autoritário do Estado brasileiro no período ditatorial. Na verdade, mais que um projeto, um sonho! Foram feitas ações de grandes encantamentos geométricos sobre a floresta. Um sonho de civilizar a floresta e garantir uma narrativa.

Nesse sentindo, uma elucidação se faz importante: Essas representações sedimentadas sobre a Transamazônica, construíram uma imagética a partir da ótica de “sobrevoo”, do “olhar de cima” condenando ao abandono, e decretando inexistência a quem mora nas suas beiras (como destaca o geógrafo paraense, Wallace Pantoja).

Mas, e se eu te contar que a existência se dá à beira da estrada. Nas vicinais! Que vem do latim “vizinhança”. Ou se preferir; longos ramais de terra batida. As vicinais possuem nome e sobrenome, ou seja, uma relação de toponímia (nos dizeres de Yi-Fu Tuan). As vicinais possuem caminhos sinuosos e ladeiras enormes (uma topografia singular), ela é o elo entre os assentamentos e a estrada. E, nesse trajeto de vários quilômetros, a distância não se torna geométrica, mas sim, existencial, segundo Éric Dardel, na obra: O homem e a terra.

Foto 1: Prancha fotográfica retratando momentos vivenciados no cotidiano do Assentamento Rio Cururuí-Pacajá), a partir da vacinal do Adão. Fonte: autor, 2019.

INDO À BEIRA

Tive o contato com à beira da Transamazônica paraense ainda na graduação, em 2014. Foi quando eu conheci a realidade dos assentamentos e das famílias no município de Marabá (porção leste da Transamazônica paraense). Causou um impacto, e, ao mesmo tempo, eu não conseguia encontrar nos autores clássicos da questão agrária no Brasil, vários elementos que estavam naquela realidade.

Já em 2018, no mestrado, após idas e vindas dos trabalhos de campo nos municípios Anapu e Pacajá (porção leste da Transamazônica paraense), me indaguei se ainda precisava da “rede de segurança”, o “calçado muito bem calçado”, para dizer o que todo mundo já sabe sobre a questão agrária.

Um exercício difícil, porém, penso que seja necessário, que é limpar a nossa experiência de leitura de todos esses elementos antipredicativos que já amarram aquilo que queremos olhar na pesquisa. Estou atrás de vivências concretas que se diferenciam no mesmo ambiente, o singular. E, portanto, não encontrar meros exemplos da questão agrária para encaixar nas teorias que já foram aplicadas.

A compreensão estruturante da questão agrária, proveniente do materialismo histórico dialético, abarca e responde muitas perguntas até o momento. São contribuições importantes e significativas ao agrário brasileiro, amazônico em particular, e a quem habita nele. Mas, existem limites, principalmente na compreensão da escala corpórea do sujeito. Estamos falando de ciência, e, portanto, outros pontos de vistas são factíveis.

À BEIRA ENQUANTO CARNE

Me interessa compreender uma outra fenomenologia do corpo, fazendo diálogo entre a questão agrária na Transamazônica paraense, em contexto de assentamento de Reforma Agrária, atravessando o corpo da criança, do jovem e do idoso. Esses corpos possuem tempos e espacialidades diferentes. Exemplificando a temporalidade: a criança e o jovem, necessitam ser instigadas. Já o tempo do idoso, que possui uma trajetória densa, é também o tempo da desconfiança e do silêncio. O pesquisador precisa adentrar nesse universo. Portanto, me interessa compreender o processo experiencial vivido no cotidiano, onde a carne (diria Merleau-Ponty), é esse elo de ligação entre o eu, e o mundo.

As experiências corporais vivenciadas na Transamazônica paraense, me fizeram refletir sobre o corpo como uma abertura importante para se compreender a questão agrária na região. Como essas experiências corporais iluminam esse sentido de vivência e ambiência na vicinal, começando a partir do meu corpo: como ele cansou, se emocionou, atravessou ladeiras enormes (no verão e inverno), sofrendo até acidentes que levaram a cirurgia.

E, a partir dessas experiências concretas, venho dialogar com esse corpo, que é o corpo adoecido do seu Marcelino (ver o relato abaixo), porque talvez seja adoecido por conta da quantidade de marcas que possui uma história que é pensada no plano macroescalar da questão agrária, mas que grita nesse corpo, no nível mais básico da doença.

Em outras palavras: Seu Marcelino, natural do estado do Maranhão, agricultor, que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), é diabético, e foi infectado mais de 15 vezes pela malária, porque vive em um assentamento precarizado em condições limites da existência no meio da floresta.

Já, a professora Terezinha Silva, natural do Piauí, alfabetizadora de crianças em turmas multisseriadas, nas vicinais de Pacajá desde a década de 90, em condições de trabalho insalubres e desmotivadoras, tornando o ofício de educar um milagre diário. Eles estão na “ponta” do processo experimentando os rebatimentos dessa questão agrária na pele, e, portanto, não podem ser solapados pelas macroestruturas e categorizações prontas.

Antes de serem categorizados como campesinato de fronteira, um exercício fenomenológico importante seria: O que são essas pessoas enquanto existências?

Nesse escrito, trago a reflexão do corpo como ausência, o “não ter”. Tomando por exemplo, a questão agrária, que é teórica, tornando-se sinestésica quando mergulho no solo batido do cotidiano, e, a partir daí, habita a experiência corporal nas vicinais dentro do debate da questão agrária, nas experiências das interdições desse corpo que é fraturado existencialmente.

Do corpo que precisa ir além, porque nunca é permitido a ele, então, ele ocupa os espaços, ele vai atrás, cansa, cai e levanta, porque precisa lutar mesmo na dor. São corpos que possuem dificuldades de passagem, por isso que a vicinal é uma ambiência produzida nos contornamentos dessas interdições.

Como esses corpos nos apresentam ou nos ensinam acerca da questão agrária e nos mostram outros horizontes de sentidos para a vida e para o futuro?

A autora Clarice Lispector (na epígrafe que abre este escrito) nos provoca a pensar (no melhor sentido da palavra) qual o sentido do sentindo? A subjetividade é um termo ausente das pesquisas, geograficamente a gente sabe pouco.  Existe uma dimensão emocional e simbólica que não é valorizada nas pesquisas sobre questão agrária, por isso, perde-se parte da compreensão da realidade amazônica. Já passou da hora de considerarmos a subjetividade como elemento importante da existência do ser-no-mundo.

Agora, que tal pensarmos o corpo conectado ao mundo em situação vicinal e, portanto, em situação de questão agrária. Vamos pensar a questão agrária como situação, mais do que paradigma, a questão agrária é uma situação que coloca ao corpo e o corpo se impõe de múltiplas maneiras no cotidiano.

Penso que precisamos dar um passo outro nas nossas pesquisas e compreensões sobre tal paradigma. Entendendo suas nuanças e singularidades de cada região, (re)configuradas no espaço-tempo. Assim, incorporamos, a partir do vivido, novas demandas da sociedade, qualificando o debate. Pois, no interior da Amazônia profunda, antes de sairmos explicando ou analisando as realidades, elas precisam ser descritas.

Science is done collaboratively

O escrito compõe parte da pesquisa de mestrado, que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.  (PGDR/UFRGS).  com auxílio financeiro de bolsa da CAPES. Sob orientação da professora Dra. Daniela Garcez Wives.

Want to know more? Access the links below!

DARDEL, E. (2011). O Homem e a Terra. Natureza da Realidade Geográfica. São Paulo: Perspectiva.

GONZÁLEZ-REY, A. (2001). A pesquisa e o tema da subjetividade em educação. Psicologia da Educação. Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação. (acesse aqui).

KUSCHNIR, Karina. (2019) Desenho etnográfico: onze benefícios de usar um diário gráfico no trabalho de campo. Pensata: Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNIFESP, v. 7, n.1, p. 328-369. (acesse aqui).

LISPECTOR, C. (2004). Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco. (acesse aqui).

MERLEAU-PONTY, M. (1999). Fenomenologia da Percepção. 2ª ed. São Paulo: Martin Fontes. (acesse aqui).

PANTOJA, W. (2018). Transamazônica: geocartografia da (in)existência entrelugares. Tese (Doutorado em Geografia), Universidade de Brasília (UNB), Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA) Brasília. (acesse aqui).

PANTOJA, W; SANTOS, A. (2019). Geocartografia vicinal em campo Transamazônico: ensaiando dobras entre corpo e mapa. Anais eletrônicos. XIII ENANPEGE – encontro da associação nacional de pós-graduação em Geografia. Universidade de São Paulo. p.1-13. (acesse aqui).

PANTOJA, W. (2019). Descritividade como um princípio da Geografia amazônica: o chamado de Eidorfe Moreira. Revista Geoamazônia. PPGEO/UFPA. E-ISSN: 2358-1778. p. 53-67. Belém. (acesse aqui).

TUAN, Yi-Fu. (1983). Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel. (acesse aqui).

Andrey Henrique Figueiredo dos Santos é um geógrafo das coisas miúdas.

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