Os micro-organismos de áreas inundáveis e sua importância num mundo em constante mudança

19 de dezembro de 2022 | Tempo de leitura: 8 minutos

By Júlia Brandão Gontijo

Quando somos desafiados a pensar na importância de áreas que sofrem influência sazonal de inundações, provavelmente o primeiro exemplo que nos vem em mente são os ciclos de inundações do rio Nilo, que permitiram que a grandiosa civilização egípcia se desenvolvesse em meio ao deserto. Nas estações de cheia, o rio depositava uma enorme quantidade de sedimentos nas áreas inundáveis, formando assim a região do Crescente Fértil e permitindo o estabelecimento da agricultura nesta civilização. Porém, um fato que nunca vemos citado nos livros é a importância dos micro-organismos para a ciclagem da matéria orgânica e liberação dos nutrientes nessas áreas. É fascinante imaginar o quanto esses seres tão pequenos foram essenciais para o desenvolvimento de uma civilização tão importante para a história da humanidade.

Pensando em uma escala global, os micro-organismos têm um papel fundamental para a ciclagem de nutrientes essenciais para a vida na Terra (por exemplo, carbono, nitrogênio, fósforo, enxofre, oxigênio, etc.), possibilitando assim a manutenção da vida como a conhecemos. Muitos micro-organismos também participam ativamente do equilíbrio dos gases de efeito estufa na atmosfera, como o gás carbônico (CO2) e o metano (CH₄, possuindo um poder de aquecimento até 25 vezes maior que o CO2), sendo que a produção e/ou consumo desses gases é parte essencial do metabolismo desses micro-organismos. Pensando em compreender essa dinâmica, nosso grupo de pesquisa do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA/USP) buscou investigar a microbiota de outra região inundável muito importante para o planeta, a Bacia Amazônica, que possui um papel imensurável para o desenvolvimento de toda a região, seja social, econômica e ambiental. As extensas áreas inundáveis cobrem mais de 800.000 km2, segundo pesquisa de Laura Hess e colaboradores.

Margens do rio Tapajós na comunidade de Jamaraquá, Belterra-PA, Brasil. Foto: Júlia B. Gontijo.

As áreas inundáveis da região amazônica são conhecidas como grandes emissoras naturais de CH₄. Isso acontece devido ao ambiente anaeróbico (ausência de oxigênio) estabelecido em áreas alagadas, condição ideal para o metabolismo microbiano metanogênico (ou seja, produção de CH₄). Por outro lado, o metabolismo microbiano metanotrófico (isto é, associado ao consumo de CH₄) pode ocorrer tanto na presença quanto na ausência de oxigênio. Ambos os processos fazem parte da ciclagem da matéria orgânica dos sedimentos dos rios e são dependentes das condições ambientais. Neste contexto, um trabalho recente publicado pela cientista Dra. Luana Basso mostrou que a concentração de CH₄ varia consideravelmente ao longo da Bacia Amazônica.

Considerando que o equilíbrio de ambos os processos de metanogênese e metanotrofia resultam nos fluxos finais de CH₄ para a atmosfera, evidenciamos a importância de se estudar os micro-organismos e suas capacidades metabólicas. Portanto, o trabalho do nosso grupo de pesquisa publicado na revista Molecular Ecology descreveu a diversidade de micro-organismos metanogênicos e metanotróficos em áreas inundáveis da região de Santarém e Belterra, no estado do Pará. Neste trabalho, nós estudamos os micro-organismos das amostras de sedimentos de áreas localizadas nos rios Tapajós e Amazonas, investigando amostras de DNA coletadas nesses locais e buscando pistas de suas identidades. Nós verificamos que a diversidade desses grupos microbianos está diretamente relacionada com a composição química dos sedimentos. Além da alta diversidade de produtores de CH₄ já esperada para as áreas inundáveis, também identificamos uma alta diversidade de consumidores de CH4 que utilizam diferentes estratégias metabólicas para oxidar CH4. Também exploramos o potencial genômico de uma bactéria metanotrófica muito abundante nas áreas inundáveis da Amazônia, a Methylocystis sp., e os resultados foram publicados recentemente na revista Microorganisms. Nós encontramos diversas adaptações metabólicas que permitem a presença e atividade dessa bactéria nessas áreas.

Investigação de amostras de DNA de micro-organismos coletados nos rios Tapajós e Amazonas. Foto: Ana Vitória Reina.

Segundo o IPCC, diante de um cenário de mudanças climáticas, com previsões alarmantes de alteração nos padrões de chuva e de um aumento de temperatura de 2ºC na região amazônica, estima-se que as emissões de CH₄ aumentem ainda mais.

É importante pensar que o efeito estufa pode estimular as emissões de CH₄ e que o aumento do CH₄ na atmosfera estimula o efeito estufa. Portanto, mais do que conhecer as fontes de CH₄, é fundamental compreender os micro-organismos consumidores deste gás, que serão, potencialmente, um dos principais responsáveis por mitigar os efeitos causados pelo aumento de temperatura nas emissões naturais de CH₄ na região Amazônica.

E o que esperar para o futuro? Seja pela possibilidade do estabelecimento da agricultura numa área desértica, ou pela mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, o entendimento do papel dos micro-organismos no ambiente ainda é incipiente. Graças às inovações tecnológicas de análises de DNA, a investigação da microbiota está cada vez mais acessível, possibilitando, dia após dia, ultrapassar a fronteira do conhecimento em microbiologia. Sendo assim, estamos cada vez mais perto de compreender e prever o funcionamento dos micro-organismos em diferentes cenários e como podemos utilizá-los como ferramenta para benefício do meio ambiente.

Science is done collaboratively

Este trabalho vem sendo desenvolvido no Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (CENA/USP) em parceria com a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e Netherlands Institute of Ecology (NIOO/KNAW). O trabalho recebeu financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, Código de Financiamento 001), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, (#133769/2015-1) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (#2018/14974-0 e 2019/25924-7). Este trabalho também faz parte do projeto temático FAPESP Dimensões US-BIOTA – São Paulo: Integrando as dimensões da biodiversidade microbiana ao longo de áreas de alteração do uso da terra em florestas tropicais (#2014/50320-4), coordenado pela Profa. Dra. Siu M. Tsai e Prof. Dr. Jorge L. M. Rodrigues.

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Artigos científicos:

Basso et al. 2021. Amazon methane budget derived from multi-year airborne observations highlights regional variations in emissions. Communications Earth & Environment, 2(1), 1-13. (Link).

Dean et al. 2018. Methane feedbacks to the global climate system in a warmer world. Reviews of Geophysics, 56(1), 207-250. (Link).

Gontijo et al. 2021. Not just a methane source: Amazonian floodplain sediments harbour a high diversity of methanotrophs with different metabolic capabilities. Molecular ecology, 30(11), 2560-2572. (Link).

Gontijo et al. 2022. Insights into the Genomic Potential of a Methylocystis sp. from Amazonian Floodplain Sediments. Microorganisms, 10(9), 1747. (Link).

Hess et al. 2015. Wetlands of the lowland Amazon basin: Extent, vegetative cover, and dual-season inundated area as mapped with JERS-1 synthetic aperture radar. Wetlands, 35(4), 745-756. (Link).

Relatório:

IPCC, 2022. Sixth Assessment Report. Climate Change 2022: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. (Link).

Júlia Brandão Gontijo é engenheira agrônoma pela Universidade Federal de Viçosa (UFV-CAF). Também é mestre e doutoranda em Ciências pela Universidade de São Paulo (CENA/USP), ambos sob orientação da Profa. Dra. Siu M. Tsai. Atua principalmente nas áreas de Microbiologia Básica e Molecular, Ecologia Microbiana e Bioinformática. Durante o doutorado, realizou estágio sanduíche no Netherlands Institute of Ecology (Holanda), sob supervisão do Dr. Paul Bodelier. More information on Lattes, no Twitter and at ResearchGate.

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