Monitorando os golfinhos de rio da Amazônia
10 de dezembro de 2021 | Tempo de leitura: 10 minutos
Por Jéssica Melo
Você sabia que existem golfinhos de rio apenas na Ásia e América do Sul? E o Brasil foi agraciado com 4 das 9 espécies (propostas) existentes: os botos do gênero Inia e o tucuxi (Sotalia fluviatilis), todos restritos à Amazônia.
Botos e tucuxis são cetáceos simpátricos, ou seja, que vivem no mesmo local mas que possuem divergência genética. O boto é o maior golfinho de rio, chegando a 2,8 metros, e é o mais antigo habitante das águas amazônicas. Seus ancestrais marinhos entraram para os rios durante o Mioceno (por volta de 15 milhões de anos atrás) e evoluíram juntamente com a transformação da Amazônia nesse sistema fluvial de extraordinário tamanho, diversidade e abundância. Já os tucuxis são os menores golfinhos de rio (1,5 metro) e são novatos em termos de Amazônia: a teoria é de que seus ancestrais entraram no rio há 5 milhões de anos e, portanto, possuem características muito semelhantes aos seus parentes marinhos.
O tucuxi (Sotalia fluviatilis), acima, e o boto (Inia geoffrensis), abaixo. Note como são golfinhos diferentes entre si – o que permite a fácil distinção pelos pesquisadores em campo. Fotos: tucuxi por Franklin Checa disponível na iNaturalist, e boto por Mamíferos de Colombia disponível na Flickr).
Uma das principais questões para pensar na conservação de uma espécie é saber seu tamanho populacional. Acontece que a Amazônia é gigante e diversa, e seus rios também.
Existem diferentes habitats para os animais aquáticos, como lagos, canais entre rios, canais de ilhas, confluências (encontro de dois rios ou canais), rios principais (como o rio Solimões) e tributários, que são rios menores que deságuam nos rios principais. Cada habitat desses possui condições diferentes, que podem ser favoráveis ou não para os animais. Por exemplo, o boto é um animal mais solitário mas que costuma se aglomerar em áreas muito produtivas, como em confluências de rios, e raramente vai para o centro de grandes rios por causa da correnteza. Já o tucuxi, um golfinho social que forma grandes grupos coesos, pode ser encontrado mais afastado da margem do rio, mas também adora as confluências. Cada espécie tem um comportamento diferente que precisa ser levado em consideração antes de estimarmos quantos indivíduos existem. É por isso que é tão difícil saber a população total das espécies! A área de vida do boto é praticamente do tamanho da Amazônia. enquanto a do tucuxi é um pouco menor (veja a imagem abaixo).
Mapa mostrando a distribuição de botos (gênero Inia spp.) em rosa e tucuxis (espécie Sotalia fluviatilis) em roxo. Imagem de Minzinho disponível na Wikimedia Commons modificada por Arielli Fabrício Machado usando silhuetas animais do PhyloPic.
Por esses aspectos, o Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos Amazônicos (GPMAA) do Instituto Mamirauá, junto com outros parceiros, realiza campanhas de estimativa populacional de golfinhos amazônicos ao longo da Amazônia, sempre com a mesma metodologia e levando em consideração as diferentes características do sistema fluvial. E dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, uma área protegida no coração da Amazônia, fazemos um monitoramento populacional desde 2017 para entender o que está acontecendo com essas populações e detectar qualquer declínio populacional. Em 2021, esta pesquisa passou a contar com o apoio da National Geographic para a realização do trabalho de campo e com o apoio dos ribeirinhos para a coleta de dados.
Dentre as diferenças comportamentais de cada espécie e dos diferentes habitats de um rio, também precisamos nos atentar ao ciclo hidrológico amazônico. Durante um ano, encontramos quatro estações hidrológicas: cheia, vazante, seca e enchente. As densidades dos golfinhos também variam de acordo com o ciclo, já que durante as cheias os animais ficam mais dispersos na várzea e, na seca, a disponibilidade de habitat diminui e os encontramos com maior facilidade. O boto, em especial, tem a habilidade de entrar nos igapós, ou floresta alagada, onde encontram um ambiente de água calma e com muita disponibilidade de peixe. O tucuxi não consegue entrar, pois não possui flexibilidade para desviar das raízes, troncos e caules que ficam debaixo d’água. Sendo assim, esta pesquisa é realizada em todas as estações para entendermos melhor a real situação destas espécies.
Igapó, ou floresta alagada, durante o período hidrológico de cheia. Por ser um local de difícil acesso, apenas o boto é capaz de entrar. Eles evoluíram há mais tempo na Amazônia e perderam a fusão entre as vértebras cervicais, o que permite maior flexibilidade para desviar dos obstáculos do igapó. Foto: Jéssica Melo.
A notícia ruim é que todos os golfinhos de rio do mundo estão oficialmente ameaçados de extinção. Uma das grandes ameaças é a pesca, que pode resultar na captura incidental dos animais, principalmente quando se utilizam redes.
A vaquita (Phocoena sinus) é um golfinho do Golfo da Califórnia que está à beira da extinção, com menos de 20 indivíduos restantes, sendo a pesca a única ameaça. O baiji (Lipotes vexillifer), um golfinho de rio chinês, foi visto pela última vez em 2002 e declarado como funcionalmente extinto em 2006 devido, principalmente, à captura incidental em redes de pesca. A tendência é de que esta ameaça aumente cada vez mais com o aumento populacional humano e nossa maior demanda por alimentos. Na Amazônia Central, onde ainda não temos a presença de hidrelétricas, a pesca também é a maior ameaça aos botos e tucuxis. Tanto a captura incidental quanto o uso da carne do boto como isca para a pesca da piracatinga (Calophysus macropterus) afetam as populações de golfinhos. Além de monitorar as populações de botos, nós também registramos os artefatos de pesca ao longo da área da pesquisa e vimos que mais de 50% são malhadeiras ou redes, as mais perigosas para os cetáceos.
Mas como já estamos muito cansados de notícias ruins, vou terminar este texto com a parte boa das análises: desde 2017, vimos que as populações de boto e tucuxi parecem constantes na Reserva Mamirauá, sem declínio populacional (imagem abaixo). Ainda é muito cedo para um veredito final sobre a saúde das populações, já que estamos falando de grandes mamíferos que precisam de muito tempo para se reproduzirem. Mas prefiro ficar com a esperança! Esperança de que nossos esforços importam, de que tornar uma área protegida por lei faz sentido em termos de conservação da natureza, e de que a resiliência desses animais é suficiente para sobreviver em meio a tanta degradação antrópica.
Gráfico mostrando as densidades populacionais (número de indivíduos por km²) de 2017 a 2020 na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Existem algumas flutuações naturais, mas não vemos um declínio na população. Modificado de Marmontel et al. (2021).
Science is done collaboratively
Esta pesquisa é realizada pelo Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos (GPMAA) do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que é liderado pela Dra. Miriam Marmontel, e conta com o apoio de outros pesquisadores e ribeirinhos, moradores da Reserva Mamirauá, para a coleta de dados. Em 2021 passou a ser financiada pela National Geographic. Além disso, o grupo South American River Dolphins Initiative (SARDI) é uma iniciativa de colaboração entre diversos parceiros, que realiza as campanhas de estimativa populacional de golfinhos de rio ao longo da Amazônia.
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Artigos científicos:
Marmontel et al. Population estimates of Amazonian river dolphins in the Mamirauá Sustainable Development Reserve before and after the “piracatinga” fishery moratorium. International Whaling Commission. (Link)
Paschoalini et al. 2021. Density and Abundance Estimation of Amazonian River Dolphins: Understanding Population Size Variability. Journal of Marine Science and Engineering, 9, 1184. (Link)
Reportagem:
National Geographic na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá: Quantos botos há na Amazônia? (Link).
Site:
Portal da plataforma South American River Dolphins. (Link)
Jéssica Melo é bióloga e mestre em Ecologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente trabalha no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá como bolsista PCI no Grupo de Pesquisas em Mamíferos Aquáticos Amazônicos.
More information on Lattes and ResearchGate. Foto: Ethel Braga – National Geographic Brasil.