Para onde vão as aves das várzeas amazônicas quando a água do rio sobe?
12 de maio de 2024 | Tempo de leitura: 7 minutos
Por Anaís Prestes Rowedder
Solta-asa-do-norte (Hypocnemoides melanopogon) no período de cheia dos rios, alimentando-se de uma aranha próximo à linha da água. Foto: Anaís Prestes
As várzeas amazônicas são florestas extremamente dinâmicas, devido à sua forte sazonalidade que é dada pela água, e não pelo clima. Isso acontece devido ao aumento do volume de água nos rios, que transbordam e inundam grandes áreas de florestas ribeirinhas todos os anos, transformando ambientes terrestres em ambientes aquáticos por vários meses. A vegetação nesse ambiente precisa ser adaptada às inundações, e muitas espécies de plantas regulam seus ciclos de vida de acordo com o ciclo dos rios.
Mesmo com as grandes mudanças no ambiente, há muitos animais terrestres, sem habilidades para a vida aquática, que se aventuram em viver nestes locais por toda a sua vida.
Mas assim como o ambiente é sazonal, o comportamento e uso do ambiente por estes animais também precisam ser sazonais. Então, sabendo que o ambiente permanece alagado por meses e que grande parte da floresta fica submersa e indisponível para animais exclusivamente terrestres, como essas espécies se adaptam e vivem nas várzeas amazônicas?
Para os aracnídeos, como as aranhas e opiliões, já há algumas respostas, e é incrível como cada espécie pode utilizar diferentes estratégias para sobreviver. Existem aranhas que possuem seu ciclo de vida sincronizado com o ciclo anual da inundação. Quando está seco, as aranhas colonizam o solo da floresta, alimentam-se e reproduzem-se entre as folhas caídas. Quando a água começa a subir, essas aranhas já estão no fim de sua vida, e são seus filhotes que permanecem na floresta, subindo nas árvores e ocupando o ambiente vertical disponível acima da linha da água. Nas árvores, os filhotes crescem e, quando a água começa a descer, eles recolonizam o solo assim como seus pais haviam feito. Há também um pseudoescorpião (também chamado de “falso escorpião”) que utiliza uma estratégia diferente. Ele habita o solo e lá permanece quando a floresta é alagada, no entanto, este pseudoescorpião regula sua fisiologia do corpo para permanecer em um estado de dormência na cheia, e volta a despertar no período seco.
As adaptações não se limitam aos aracnídeos, elas também foram observadas nas aves, um dos grupos mais biodiversos e estudados do mundo. No entanto, até pouco tempo não se sabia sobre as adaptações das aves a estes ambientes efêmeros das florestas de várzea. Embora seja fácil imaginar que as aves simplesmente poderiam deixar a região voando, na realidade, a complexidade é maior devido à grande diversidade de espécies de aves, o que implica em diversos comportamentos e hábitos de vida. Um caso que chama a atenção são as aves que se alimentam de insetos (insetívoras) e que vivem no sub-bosque da floresta, ou seja, em um estrato mais próximo ao chão da floresta. Para estas aves, espera-se que elas não consigam fazer grandes deslocamentos.
Fêmea de papa-formiga-de-sobrancelha (Myrmoborus leucophrys), uma das cinco espécies de aves insetívoras de sub-bosque estudadas na floresta de várzea. Foto: Anaís Prestes
Até então, o que se sabia é que espécies de aves insetívoras de sub-bosque são as mais sensíveis a mudanças do ambiente, principalmente as espécies que vivem em terra firme, um ambiente que não está sujeito a inundações. Essas espécies são as primeiras a desaparecerem da região quando há algum distúrbio no ambiente, muitas vezes evitando, inclusive, locais próximos à borda da floresta. Se essas espécies de aves são tão especializadas em viver apenas no sub-bosque da floresta, sendo sensíveis a bordas e mantendo-se longe do dossel, como se adaptam quando seu ambiente de preferência está inabitável?
Para entender isso, realizamos um estudo com cinco espécies de aves insetívoras de sub-bosque das áreas de florestas de várzea do baixo rio Purus.
Descobrimos que essas aves permanecem no ambiente mesmo no período da cheia, e a sua principal adaptação é a movimentação vertical na floresta, que ocorre do período da seca para cheia.
Ou seja, como a floresta é alta, há uma parte da vegetação que não fica submersa, então as espécies ocupam uma altura da floresta quando está cheio de água e outra altura quando está seco. Apesar dessa movimentação, cada espécie possui sua preferência em relação à altura em que habita na floresta, algumas mais altas e outras mais próximas da linha da água.
Mesmo com a movimentação vertical na vegetação, algumas aves procuram permanecer em locais com a vegetação do micro-habitat, o local específico dentro ambiente maior, muito parecido com as que habitavam na seca. E outras espécies podem se adaptar ainda mais, procurando habitar locais específicos com a vegetação mais densa e fechada na cheia, comparada com os ambientes mais abertos que preferem na seca.
Os resultados da pesquisa evidenciam que as aves de sub-bosque das várzeas são altamente adaptadas às grandes mudanças sazonais da floresta.
Quando a água sobe, o espaço vertical da floresta para as aves diminui. As aves se adaptam movendo-se verticalmente, procurando ocupar parte desse espaço disponível, algumas preferindo ficar próximas à linha da água, enquanto outras optam por áreas mais elevadas na vegetação. Juntamente com elas, muitos insetos do solo e dos troncos também se adaptam, movendo-se verticalmente. Isso pode ser vantajoso para as aves, uma vez que muitos desses insetos são suas presas. No entanto, há várias espécies ocupando um espaço menor, mas com a movimentação vertical dos insetos essas aves podem ter mais facilidade em encontrar alimento, já que durante a seca há mais locais de abrigo para esses insetos no solo da floresta.
Floresta de várzea na cheia com cigarras nos troncos das árvores próximo a linha da água. Foto: Anaís Prestes
Ciência se faz com parceria
O estudo apresentado neste texto é resultado da pesquisa realizada por Anaís Rebeca Prestes Rowedder durante seu curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ecologia, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). A orientação foi realizada pelo professor Mario Cohn-Haft e co-orientação de Thiago Orsi Laranjeiras, também com a parceria do doutor Torbjørn Haugaasen e colega em campo Benjamin Gilmore. Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do governo federal por meio da bolsa de mestrado do CNPq e da Faculdade de Ciências Ambientais e Gestão de Recursos Naturais (MINA) da Universidade Norueguesa de Ciências da Vida (NMBU).
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Adis, J. 1997. Estratégias de sobrevivência de invertebrados terrestres em florestas inundáveis da Amazônia central: Uma resposta à inundação de longo período. Acta Amazonica, 27(1): 43–54. (acesse aqui)
Rowedder, A. R. P., Laranjeiras, T. O., Haugaasen, T., Gilmore, B., Cohn-Haft, M. 2021. Response of understory avifauna to annual flooding of Amazonian floodplain forests. Forests, 12(8), 1004. (acesse aqui)
Sobre a autora
Anaís Prestes Rowedder é bióloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre em ecologia pelo INPA. Atualmente é bolsista de pesquisa com aves no Grupo de Pesquisa de Ecologia de Vertebrados Terrestres (Ecovert) no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).
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