Violações de modos de existência, racismo e (in)justiça ambiental na Amazônia marajoara
17 de dezembro de 2020 | Tempo de leitura: 5 minutos
Por Maycom Nascimento
“Existe muita Amazônia linda, deslumbrante, existe muita gente que vive, dorme, come, sonha de uma forma totalmente original, e existem vários idealistas, que ao decidirem o que fazer de suas vidas, assumem que o mundo também é responsabilidade sua, e se esforçam para deixá-lo mais como lhes parece adequado”. (Lorena Cândido Fleury, 2013, p.24)
Como diz o ditado, a Amazônia nos últimos anos tem “ganhado a boca do povo”, seja pela riqueza de sua biodiversidade, seja pelos casos de incêndios e desmatamento que atingiram (atingem) a região recentemente. Apesar de ser uma região bastante cobiçada e atrativa tanto do ponto de vista cultural quanto econômico, muito pouco sabemos sobre ela, de quem nela vive, como vive e os desafios e contradições dessa vivência. Falar de Amazônia é também falar de sua diversidade e riqueza sociocultural, são populações quilombolas, ribeirinhas, camponesas, extrativistas, indígenas e outras centenas, detentoras de modos de vida e existência, práticas culturais, saberes e fazeres diversos.
Não obstante essas populações locais terem seus direitos reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, elas convivem sob um clima de medo e violência em razão da expansão de atividades agrícolas e não agrícolas (construção de hidrelétricas, portos, ferrovias, monocultivo da soja, arroz etc.) que ameaça a permanência em seus territórios e provoca uma ruptura nos direitos civis, territoriais e étnicos de Povos e Comunidades Tradicionais.
Os estudos sobre racismo e injustiça ambiental se debruçam na correlação entre os campos ambiental e étnico racial a fim de analisar os custos do chamado “desenvolvimento” sobre populações em contexto de vulnerabilidade social, chamando atenção também para o componente racial que essas lutas assumem. A grande maioria das construções e empreendimentos do setor público e privado se instalam em áreas onde vivem populações racial e etnicamente identificadas como indígenas e quilombolas, sendo estas as que sofrem as consequências dos danos ambientais e sociais que trazem os empreendimentos à realidade desses grupos, conforme aponta os dados do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (veja aqui).
O estudo que estamos realizando, no âmbito do curso de mestrado em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vem procurando compreender como, nesses contextos de disputas e conflitos atravessados por essas violações de direitos e modos de existência, se refletem o racismo e a injustiça ambiental. O empírico estudado trata-se dos impactos à comunidade quilombola de Gurupá no município de Cachoeira do Arari, no Arquipélago da Ilha do Marajó/Pará, causados pelo avanço da fronteira agrícola do arroz na região.
O arquipélago marajoara é uma das regiões do Estado do Pará que mais concentra comunidades quilombolas, são 15 ao total, sendo que nenhuma possui titulação de suas terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), contando apenas com a certificação da Fundação Cultural Palmares.
Os dados coletados até o momento apontam uma série de irregularidades nas áreas de cultivo de arroz denunciada pela comunidade quilombola, a saber: a não realização da consulta prévia livre e informada, conforme prevê a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); a utilização do território quilombola para aberturas de portos para o escoamento da produção; lançamento aéreo de agrotóxicos sem obedecer às normas relativas à aviação agrícola; concessão do Licenciamento Ambiental pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado sem a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA).
Campos de arroz em Cachoeira do Arari. Foto: Raimundo Paccó/Amazônia Real
Além disso, identifica-se que, ainda que essas comunidades quilombolas tenham seus direitos institucionalmente garantidos, elas permanecem r-existindo, nos termos do Geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, para manter suas tradições, seus modos de existência e territórios. Por fim, verifica-se que a forma como se conduziu o rito de instalação da rizicultura sem considerar as diferentes formas de vida, visões de mundo, de relações com a natureza e com o ambiente, além de apresentar graves violações de direitos individuais e coletivos, é também um relevante sinal de como esses empreendimentos do agribussiness brasileiro são capazes de transformar esses sujeitos em inexistentes.
Ciência se faz com parceria
O texto apresentado é resultado da pesquisa que está sendo realizada por Maycom Nascimento no âmbito do curso mestrado do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS). A orientação é de Lorena Cândido Fleury. O estudo conta com o apoio financeiro do governo federal através de uma bolsa de mestrado CAPES.
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Acserald, H. (2002). Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 5: 49-60. (acesse aqui)
Fleury, L. C. (2013). Conflito ambiental e cosmopolítica na Amazônia brasileira: a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em perspectiva. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Porto Alegre. (acesse aqui)
Gomes, D. L. & Bringel, F. O. (2016). Tensões territoriais entre rizicultores e quilombolas no arquipélago do Marajó. In: Macedo, C. O., Oliveira, F. B., Souza, R. B., Marcos, R.S. (Org.). Os ‘Nós’ da Questão Agrária na Amazônia. 1ed. Açaí, v. 1, p. 153-167.
Herculano, S. (2008). O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. InterfacEHS – Revista de gestão integrada em saúde do trabalho e meio ambiente, 3(1): 01-20. (acesse aqui)
Maycom Nascimento é pedagogo, mestrando em Desenvolvimento Rural e membro-pesquisador do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS) sediado na UFRGS. Veja mais na Plataforma Lattes.