Escavando um sítio arqueológico

09 de junho de 2023 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Fernando Ozorio de Almeida

Sondagem sendo realizada em picada aberta na mata do sítio Teotônio, Rondônia. Foto: Fernando Ozorio de Almeida (todos os direitos reservados).

Um dos momentos mais bacanas da profissão do arqueólogo e da arqueóloga é a escavação de um sítio. Um sítio nada mais é do que um local, um lugar. O trabalho de campo é a chama do coração da arqueologia. Apesar dos trabalhos serem exaustivos, esse é o momento em que todos precisam trabalhar juntos para que as coisas funcionem. Há mais de 10 anos participo de uma equipe que escava o sítio Teotônio, no alto Rio Madeira, ao lado de uma cachoeira que existia nas proximidades da capital de Rondônia, Porto Velho.

Durante escavações, é necessário tomar uma série de decisões. Quase nunca se escava um sítio inteiro. O sítio Teotônio, por exemplo, possui dezenas de hectares e material com até 4 metros de profundidade. Levaria muito tempo, muita gente para escavar e analisar, e provavelmente não haveria lugar para guardar tanto material. Assim, onde escavar? 

Existem várias estratégias, vou contar apenas algumas possibilidades. Em geral, buscamos logo no início ter uma ideia ampla do sítio. Depois focamos em locais específicos. Uma exceção ocorre quando identificamos imediatamente lugares mais interessantes para escavarmos, como elevações, ou locais que mesmo antes de escavar a gente consiga ver o sedimento e notar uma grande presença de material, como as áreas de roças ou barrancos. 

Se isso não acontecer, uma possibilidade é a realização de uma série de pequenas sondagens, de aproximadamente 30 centímetros de diâmetro e 1 metro de profundidade. Essas sondagens são escavadas com cavadeiras, em espaços regulares que variam de acordo com o que achamos ser o tamanho do sítio e a quantidade de pessoas e tempo disponíveis para a realizar a tarefa. Quando a área é de floresta, temos que abrir picadas no mato. Aqui é necessário muito cuidado, pois é nesse momento que podemos nos deparar com diferentes bichos. Ferroadas são frequentes. Através dessas sondagens podemos ter uma boa ideia do tamanho do sítio, da profundidade média do material arqueológico e os lugares com mais material. Foi assim que fizemos no Teotônio.

Perfil estratigráfico de área de escavação aberta no sítio Teotônio. Pelo menos 5 indústrias cerâmicas foram identificadas nessa área, com ocupações que ultrapassam os 3 mil anos antes do presente. Foto: Fernando Ozorio de Almeida (todos os direitos reservados).

Essas informações são muito importantes para que tomemos a decisão seguinte: onde escavar com mais cuidado. Em geral, sondagens que indiquem material atingindo grandes profundidades e em elevada quantidade vão ser privilegiadas. Foi por meio de uma sondagem que identificamos uma área com material profundo no sítio Teotônio. Em áreas como essa abrimos uma ou algumas unidades de um metro quadrado cada e controlamos bem o material que sai da escavação.

Para isso, utilizamos peneiras. Toda terra escavada vai para dentro da peneira, onde provavelmente vamos encontrar cacos de cerâmica, pedras lascadas, carvões, sementes e, com sorte, alguns ossos de bichos ou mesmo de gente. Quando o material para de aparecer, nós escavamos mais alguns níveis de 10 centímetros para certificar que não tem mais nada lá embaixo. Apesar da imagem do arqueólogo escavando com pincel, este em geral só é utilizado quando queremos evidenciar algo importante: uma fogueira, um conjunto cerâmico, uma mancha estranha no solo. De resto, utilizamos as famosas colheres de pedreiro e, por que não, ferramentas mais “delicadas”, como os fantásticos ferros de cova.

Durante as atividades de campo do Teotônio contamos com a ajuda de dois moradores da vila que existe ali do lado: o Seu Gaúcho e o Seu Zé. São figuras muito queridas. O Seu Gaúcho em geral ajuda a limpar o terreno no entorno das nossas antigas escavações e de áreas novas que serão abertas. Seu Zé é nosso companheiro de escavação, e possui aquela alma elevada que impossibilita a presença de mau humor nas atividades. Ambos moram na Vila Nova de Teotônio, construída após a antiga vila de pescadores ser inundada pela construção da hidrelétrica de Santo Antônio. A Vila Nova podia bem se chamar Vila Fantasma, já que quase todo mundo foi embora. Sem cachoeira, sem peixe, sem vida. Após 9 mil anos de ocupação, quase ninguém quer morar no Teotônio.

Muitas vezes a equipe, composta de pesquisadores de várias partes do Brasil e do mundo, recebe professores e alunos e alunas do Departamento de Arqueologia da UNIR, a Universidade Federal de Rondônia. Tem aluno de lá que escavou conosco há 10 anos no Teotônio e que hoje está em vias de obter um doutorado. No meio desse conjunto de pessoas com as histórias de vida mais variadas ocorre uma intensa troca de ideias. O exemplo vem lá de cima, do coordenador da escavação, professor Eduardo Neves, que pergunta muito e que adora escutar histórias.

Papéis, papéis e mais papéis. Quando voltamos de campo, não trazemos apenas os materiais escavados como os registros que realizamos em campo. São fichas de sondagens e de escavação, mapas, desenhos e cadernos de campo com algumas ótimas interpretações, outras nem tanto, em garranchos a lápis escritos sobre um papel sujo de terra e suor. Coitado de quem for ler depois! Esse material é fundamental para os trabalhos de laboratório a serem feitos depois e vão reaparecer, mais legíveis e juntos de muitas fotos, nos relatórios, monografias e artigos.

Susi Belon, discente do curso de arqueologia da UNIR, em área de escavação do sítio Teotônio. Ao longo de todo o processo de escavação são preenchidas fichas com as informações sobre os locais escavados. Foto: Fernando Ozorio de Almeida (todos os direitos reservados).

Um sítio pode ser escavado uma única ou mais de uma vez. Há sítios que são escavados por anos e até mesmo por mais de uma década, como o Teotônio. Um fator que pode levar a novas escavações é o famoso “achado do último dia de campo”, algo interessante, como uma estrutura funerária, que é encontrada quando já está tudo pronto para ir embora. Fica para o ano que vem.

Em geral, as informações obtidas pelas análises de laboratório vão indicar os melhores lugares para escavar na próxima etapa. Datações também podem influenciar. Ao voltar, as estratégias podem mudar. Não precisamos delimitar novamente o sítio e vamos poder, logo de cara, nos concentrar em áreas específicas.

Todo o material é embalado e colocado em sacos plásticos com as informações sobre a proveniência dele no sítio. Foto: Fernando Ozorio de Almeida (todos os direitos reservados).

Ao fim do dia, os arqueólogos e arqueólogas se juntam, tomam muito guaraná e comem peixe. É ali que compartilhamos os achados do dia, botamos o papo em dia com os velhos companheiros, contamos causos e descobrimos que aquele ser estranho que você não sabe como veio parar na escavação é boa praça, um futuro camarada. Depois de tudo isso, um bom banho é recomendado!

Ciência se faz com parceria

As atividades de campo no sítio Teotônio reúnem professores e alunos de diferentes universidades (USP, UNIR, UFOPA, UERJ, entre outras) e conta com a participação de moradores da Vila Nova do Teotônio. Na última etapa de campo, em 2021, as escavações contaram também com a presença de indígenas do povo Tenharim, ocupantes do médio curso do rio Madeira. As pesquisas de campo têm contado com recursos da FAPESP e do CNPQ.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Você pode saber mais sobre as pesquisas do ARQUEOTROP (USP), coordenadas pelo Professor Eduardo Neves, e do Núcleo de Pesquisas Arqueológicas Indígenas (NUPAI-UERJ), coordenado pelos professores Anderson Garcia e Fernando Almeida, nas seguintes mídias sociais:

ARQUEOTROP da USP no Instragram (acesse aqui) e no Facebook (acesse aqui

NUPAI-UERJ no Facebook (acesse aqui

Sobre o autor

Fernando Ozorio de Almeida é bacharel em história e doutor em arqueologia pela Universidade de São Paulo. Hoje é professor do Departamento de Arqueologia da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe. É especialista em cerâmica indígena proveniente de sítios arqueológicos a céu aberto localizados em diferentes regiões do Brasil. 

Veja mais na Plataforma Lattes , no Academia e no ResearchGate.

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