Como se faz arqueologia na Amazônia?

02 de agosto de 2022 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Márjorie Lima Eduardo Tamanaha

Quando falamos em arqueologia, qual é a primeira imagem que lhe vem à cabeça? Dinossauros? Pirâmides? Cidades perdidas em meio à floresta? É bem possível que seja tudo isso e mais um pouco. O cinema ajudou a construir essa imagem da arqueologia, pois é uma ciência (assim como muitas outras) envolvida em um clima misterioso e de achados fantásticos. E isso é perfeito para um enredo de filme, não acham?

Mas isso acabou criando uma falsa imagem da nossa realidade. Para começar, a arqueologia não estuda dinossauros (isso é tema da paleontologia). A arqueologia é uma ciência para entender as sociedades humanas através de vestígios materiais, como uma vasilha cerâmica, instrumentos de pedra, rochas com pinturas e gravuras, antigas fazendas do nebuloso período da escravatura, entre tantos outros objetos e construções que deixamos no local ao longo da nossa história. E no caso da Amazônia a situação não é diferente. 

Muitas pessoas acreditam que as populações indígenas do Brasil não possuíam tecnologias ou culturas sofisticadas (em comparação aos povos Incas, Maias ou Astecas), pois não encontramos grandes templos, casas ou pirâmides feitas de pedras como no Peru ou no México. No entanto, no Brasil, existe uma infinidade de outros tipos de construções e vestígios que surpreenderiam qualquer pessoa.

Na Amazônia, por exemplo, há diferentes tipos de sítios arqueológicos que podem chegar até 12 mil anos de idade, quando as pessoas habitavam abrigos (cavernas), também há construções em terra formando elevações das águas e valas que protegiam lugares possivelmente sagrados.

Também haviam lugares de observação do sol, possivelmente frequentados mais em alguns momentos no ano. Ou seja, há uma variada representação cultural, observada em construções e artefatos com diferentes tipos de tecnologias. É possível ainda que em algumas partes a Amazônia tenha sido o centro de domesticação de várias espécies vegetais que ainda hoje ocupam nossa mesa, como o açaí, castanha da Amazônia, pupunha, mandioca, entre outros.

Alunos observando uma urna funerária retirada pelos arqueólogos na comunidade Tauary. Crédito: Grupo de Pesquisa Arqueologia-IDSM.

Na região do médio rio Solimões (estado do Amazonas), mais especificamente no lago Amanã, localizado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDSA) foram identificados mais de 50 sítios arqueológicos, com diferentes tamanhos e ocupados em diferentes momentos da história indígena antiga desse lugar. Entre eles o sítio Boa Esperança, na comunidade ribeirinha de mesmo nome tem se destacado por sua antiguidade. As pessoas que moram hoje em Boa Esperança relataram a muitos anos a existência de grandes vasilhas enterradas, espalhadas ao longo da comunidade, e demonstravam interesse na criação de um programa de turismo ecológico de base comunitária utilizando os vestígios como atrativos para turistas. Essas vasilhas são em grande parte urnas funerárias ou artefatos que acompanharam as pessoas antigas ali enterradas.

Urnas funerárias aflorando na comunidade Boa Esperança, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã. Foto: Aline Fidelix/ASCOM-IDSM.

 Os vestígios mais antigos desse sítio arqueológico são cerâmicas de uma cultura que a arqueologia denominou como Amanã (em homenagem ao lago) e que ocupou a área em torno de 1.610 a.C. (antes da era Cristã), ou seja, mais de 3.600 anos atrás. A maior parte da cultura Amanã é formada por vasilhas semelhantes a nossos pequenos pratos e assadores. Ainda se sabe muito pouco sobre a população que habitou esse vilarejo, mas sabe-se que elas se estabeleceram em uma pequena porção do que é hoje a comunidade e marcaram o lugar deixando marcas de vários fogos, possivelmente usados para comida e manutenção da vida.

No entanto, em torno de 800 anos a.C., temos evidências de um aumento populacional nas aldeias, por conta da quantidade de utensílios cerâmicos (conhecida como cultura Pocó) e regionalmente como “Terra Preta de Índio” ou apenas Terra Preta. É muito comum encontrar fragmentos cerâmicos onde existe essa terra escura. Ela não é natural e foi criada com uma tecnologia indígena antiga, capaz de tornar o solo pobre para plantio em algo rico em nutrientes. Hoje pesquisas de todo o mundo, e no Brasil particularmente da EMBRAPA tentam desvendar essa tecnologia, mas até o momento continuamos sem respostas.

Coleção de peças arqueológicas na casa de um moradora do município de Codajás. Crédito: Márjorie Lima.

A partir do ano de 1.300 d.C. até a invasão europeia, temos a cultura Tefé e ela estava dispersa por toda a região da RDSA e se estendendo por todas as direções (da Amazônia Colombiana e Peruana até cidade de Manaus), com aldeias densamente povoadas e uma cerâmica ricamente decorada.

Os primeiros europeus que passaram pelo rio Solimões-Amazonas relataram sobre aldeias com mais de três mil pessoas, fartura de alimento e uma organização sócio-política que se estendia além das atuais fronteiras com o Peru e Colômbia, com estradas largas que conectavam várias aldeias. E também perceberam que havia muita floresta no entorno dessas aldeias, repleta de animais, plantas utilizadas por essas populações e rios cheios de peixes. 

Atualmente sabemos que as áreas de reservas ambientais, como a RDSA, e as áreas de terras indígenas são as maiores mantenedoras das florestas em pé, uma fronteira contra o desmatamento que ultrapassa recordes e coloca a Amazônia em manchetes internacionais. Isso não é aleatório. São os povos tradicionais, pessoas ribeirinhas, beiradeiras, quilombolas, entre muitas outras denominações e povos indígenas a promover essa manutenção, aspecto que a arqueologia tem mostrado com uma herança e um cuidado milenar. Uma das maiores contribuições da arqueologia da Amazônia é colaborar com os povos tradicionais, para que possamos contar essa história em nosso futuro.

Ciência se faz com parceria

A pesquisa arqueológica só ocorre graças à participação voluntária dos moradores locais, pois sem a sua boa vontade, interesse e conhecimento não seria possível a realização dos trabalhos. Pesquisadores de outras ciências (biologia, geologia, pedagogia, conservação, antropologia, etc.) e de outras instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior também são fundamentais para ampliarmos os nossos olhares sobre o passado indígena. Todas as pesquisas contaram com apoio logístico e/ou financeiro do Instituto Mamirauá. Por fim, os órgãos de fomento à pesquisa (FAPEAM, CNPq, FAPESP, Fundação Gordon e Betty Moore, entre outros) contribuem para a longevidade da pesquisa.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Reportagem: Vida e Natureza. Análise de vestígios botânicos contribui para compreensão das antigas ocupações humanas na Amazônia (acesse aqui)

Vídeo: Segundo episódio da Websérie Amazônia Pré-Colonial. (acesse aqui)

Márjorie Lima é historiadora pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutora em arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). É também colaboradora do Grupo de Pesquisa Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural na Amazônia do Instituto Mamirauá e do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos (ARQUEOTROP) do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.

Eduardo Tamanaha é historiador pela PUC/SP e doutor em arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Grupo de Pesquisa Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural na Amazônia do Instituto Mamirauá e colaborador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos (ARQUEOTROP) do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.

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