Como a ecologia e evolução de um roedor pode revelar mudanças passadas na Amazônia?

4 de novembro de 2021 | Tempo de leitura: 8 minutos

Por Arielli Fabrício Machado

Roedor de florestas da Amazônia e do Cerrado, espécie Hylaeamys megacephalus, seu nome comum é rato-do-mato e é a espécie foco do estudo que investigou hipóteses de evolução na Amazônia. Créditos da foto: Thiago B. F. Semedo.

A Amazônia é a maior floresta do mundo e uma das mais diversas. Por séculos, naturalistas buscaram identificar os padrões desta biodiversidade e os processos que a moldaram, postulando cenários e hipóteses de diversificação (evolução) das espécies. Uma das hipóteses mais estudadas na Amazônia é a hipótese dos rios como barreira proposta por Wallace em 1854 para explicar a origem de espécies; seguida da hipótese dos refúgios proposta por Haffer em 1969 para explicar a origem de espécies por dispersão e isolamento durante expansões e retrações florestais devido a variações climáticas. Outra hipótese conhecida é a hipótese de gradiente ecológico proposta por Endler em 1982 para explicar a origem da diversidade por dispersão e adaptação em ambientes contínuos, mas diferentes (veja na figura abaixo).

Compreender a evolução das espécies na Amazônia ajuda a entender questões biogeográficas importantes sobre o seu passado, suas mudanças e a influência destas nas espécies que a habitam.

Neste texto do blog, mostro um estudo onde investigamos a evolução de um roedor cricetídeo (Família Cricetidae) da espécie Hylaeamys megacephalus, conhecido como rato-do-mato, testando as hipóteses mencionadas acima. Esse roedor habita florestas da Amazônia e do Cerrado, até o norte do Paraguai na Mata Atlântica.

Esquema das hipóteses de evolução de espécies na Amazônia aplicadas para um roedor florestal da Amazônia, do Cerrado e do oeste da Mata Atlântica através de dados genéticos e ecológicos (veja o estudo).

Através dos dados genéticos (DNA) das espécies ou populações, é possível compreender suas relações, ou seja, suas relações de parentesco, origem e história. Assim, buscamos entender se o rio Amazonas foi uma barreira para esse roedor, levando a separação dos grupos (ou populações) dessa espécie. Também buscamos entender as mudanças na distribuição geográfica das florestas no passado e se elas explicam a separação entre os grupos dessa espécie e se essas mudanças poderiam ser responsáveis pela formação de grupos distintos dentro dessa espécie.

Ecologia e evolução são áreas integradas, para entender a evolução das espécies é preciso entender também sua ecologia. Para isso, além das análises genéticas, utilizamos em nosso estudo um método bastante útil em ecologia e evolução, conhecido como modelo de nicho ecológico. Os modelos de nicho ecológico podem ser integrados aos dados genéticos. Dessa forma, auxiliam na compreensão do papel dos processos históricos e ecológicos sobre os mecanismos de diversificação, além de possibilitar o teste de hipóteses como as mostradas anteriormente (veja a Sessão Quer saber mais?). Esses modelos também podem ser usados para mapear a distribuição geográfica passada.

Nesse estudo, usamos dados genéticos para investigar as relações entre os indivíduos desse roedor através de uma árvore filogenética que determina quais indivíduos estão mais relacionados entre si, incluindo uma estimativa do tempo de divergência conhecido como datação molecular. Na datação molecular, a quantidade de variações genéticas de um determinado grupo ou espécie são calibradas junto a dados genéticos de espécies-irmãs (espécies com relação de parentesco direto) e dados fósseis, quando disponíveis, para determinar a data mais provável de separação entre elas.

Através da árvore filogenética datada (figura abaixo) realizamos uma análise de reconstrução de área ancestral, onde são estimadas as áreas mais prováveis de ocorrência para o ancestral comum entre dois indivíduos (ou em outros casos, entre espécies) através das áreas conhecidas para cada indivíduo (que é representado por cada ramo da árvore filogenética). Essa análise também prevê se os ancestrais teriam ocupado novas áreas por dispersão ou separado em novos grupos por isolamento na mesma área devido à formação de barreiras.

Árvore filogenética do roedor estudado com datação, reconstrução de áreas ancestrais e eventos de dispersão (setas) e isolamento por barreira (setas duplas). A escala de tempo varia de 0 para o presente até 3,5 milhões de anos atrás. Modificado de Machado et al. (2019).

Encontramos que o grupo do norte da Amazônia (acima do rio Amazonas) divergiu há cerca de 1,35 milhões de anos atrás (Ma) através de dispersão e isolamento, sendo o rio Amazonas uma barreira. Porém, a origem desse rio é datada para cerca de 10 Ma devido ao soerguimento dos Andes que causou o desprendimento do Lago Pebas (um grande sistema de lagos e áreas alagadas no oeste da Amazônia), resultando em uma reversão na direção leste para oeste do fluxo da antiga Bacia Amazônica de oeste para leste fluindo para o Oceano Atlântico. Ainda assim, outros estudos concordam que a drenagem moderna do rio Amazonas teria se estabelecido apenas por volta de 2 Ma (veja mais detalhes na Sessão Quer saber mais?).

O grupo do sul da Amazônia e do Cerrado teriam divergido há cerca de 780 mil anos atrás através de um evento de dispersão da área do Xingu-Tocantins para as outras áreas do sul da Amazônia e do Cerrado. Avaliamos também as diferenças ecológicas entre os grupos desse roedor. Não encontramos diferenciação ecológica entre o norte e sul da Amazônia, mas encontramos diferenças entre os grupos do sul da Amazônia e do Cerrado. Apesar dessa diferenciação ecológica, não encontramos evidências claras para a hipótese de gradiente ecológico, pois esses grupos não apresentaram padrão de divergência em um contínuo, tendo dispersado para diferentes áreas, e provavelmente expandido e conectando posteriormente.

Modelos de nicho ecológico para o presente, 21 mil anos atrás (Último Máximo Glacial – LGM) e 120 mil anos atrás (Último Interglacial – LIG) para os grupos do roedor estudado. Áreas em vermelho (1) representam condições ambientais óptimas para a ocorrência da espécie até baixas em verde e nula em cinza (0). Modificado de Machado et al. (2019)

Neste estudo, mostramos como os ambientes florestais não alagados (que são o habitat da espécie investigada) mudaram ao longo do tempo, retraindo e expandindo por diferentes regiões, assim como a distribuição geográfica das espécies que habitam esse ambiente.

Além disso,  mostramos que a formação do rio Amazonas como barreira pode ter se dado em diferentes períodos no passado, desde a sua formação. Geramos também uma grande quantidade de dados genéticos para a espécie investigada, os quais foram disponibilizados na base de dados do Genbank. A disponibilização desses dados permite a realização de outros estudos abordando diversas questões evolutivas que ajudam a entender o passado da Amazônia, suas mudanças ao longo do tempo e a influência destas mudanças para a diversidade de espécies que a habitam.

Ciência se faz com parceria

Esse trabalho fez parte da minha dissertação desenvolvida na Pós-Graduação em Ecologia (PPG Eco/INPA) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e contou com a parceria de Maria Nazareth da Silva (curadora da coleção de mamíferos do INPA), Izeni Pires Farias (prof. coordenadora do Laboratório de Evolução e Genética Animal – LEGAL da UFAM), Marina Anciães (coordenadora do Laboratório de Biologia Evolutiva e Comportamento Animal – LABECA do INPA), Cláudia R. Silva, Marcelo Augusto dos Santos Junior e Mário Silva Nunes (técnico do LEGAL) que dividiu dados do seu mestrado para realização do estudo e me ensinou a trabalhar com dados genéticos tanto no laboratório como em análises. Essa pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq. Outras parcerias importantes, as quais somos eternamente gratos, foram as doações de amostras de tecido para serem usadas no estudo pelo professor Rogério Rossi (UFMT) e pelo pós-doutorando Rafael Leite (INPA).

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Chan, L. M. et al. 2011. Integrating statistical genetic and geospatial methods brings new power to phylogeography. Molecular phylogenetics and evolution, 59(2), 523-537. (acesse aqui)

Diniz Filho et al. 2009. Padrões e processos ecológicos e evolutivos em escala regional (acesse aqui)

Hoorn, C., et al. 2010.  Amazonia through time: Andean uplift, climate change, landscape evolution, and biodiversity. science, 330(6006), 927-931. (acesse aqui)

Hoorn, C. et al. 2017. The Amazon at sea: Onset and stages of the Amazon River from a marine record, with special reference to Neogene plant turnover in the drainage basin. Global and Planetary Change, 153, 51-65. (acesse aqui)

Latrubesse, E. M., et al. 2010. The Late Miocene paleogeography of the Amazon Basin and the evolution of the Amazon River system. Earth-Science Reviews, 99(3-4), 99-124. (acesse aqui)

Machado, A.F. 2015. Biogeografia de Hylaeamys megacephalus (Rodentia Sigmodontinae): integração entre modelos de nicho ecológico e filogeografia (acesse aqui)

Machado, A.F. et al. 2019. Integrating phylogeography and ecological niche modelling to test diversification hypotheses using a Neotropical rodent. Evolutionary Ecology, 33: 111–148 (acesse aqui)

Arielli Fabrício Machado é bióloga pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e doutora em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é Pesquisadora Visitante na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.

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