Aves das várzeas amazônicas

 

03 de novembro de 2020 | Tempo de leitura: 8 minutos

Por Bianca Darski

A Amazônia – onde a natureza é exageradamente rica, onde tudo que se planta se colhe, onde as árvores e as águas são abundantes – é sem dúvida o bioma dos superlativos. A dinâmica de chuvas na Amazônia está fortemente ligada aos padrões de diversidade biológica que caracteriza este bioma. Isso porque na bacia amazônica há uma combinação de um alto volume de chuvas e um terreno predominantemente plano. O resultado desta combinação é uma paisagem desenhada por grandes rios – como os rios Amazonas, Madeira e Tapajós – que separam ou conectam (dependendo do organismo!) as regiões na Amazônia.

Os terrenos baixos que estão ao redor dos grandes rios amazônicos são chamados de planícies de inundação, localmente conhecidas por várzea ou igapó. São locais anualmente inundados devido ao extravasamento das águas dos rios, um processo que pode durar meses e que afeta todos os seres que ali habitam. As áreas que não inundam são justamente as que estão situadas em terrenos mais altos e são chamadas de terra firme. Muitos estudos demonstram que há um padrão consistente na distribuição geográfica de espécies de aves em áreas de terra firme devido à presença dos grandes rios que atuam como uma barreira para a dispersão de diversas espécies, não somente de aves.

As áreas entre os grandes rios amazônicos são chamadas de interflúvios e nestes locais há uma concentração de espécies endêmicas, ou seja, espécies que somente são encontradas nestas áreas (veja mais sobre áreas de endemismo aqui). Pouco se sabe, no entanto, sobre o padrão de distribuição de espécies de aves que habitam os ambientes de várzea ou igapó, um tema que tem recebido mais atenção de pesquisadores(as) na área de ecologia, zoologia e genética na última década.

Várzea do rio Madeira próxima à cidade de Porto Velho, Rondônia, Brasil. Foto: Bianca Darski.

Diferentemente das espécies que habitam áreas de terra firme, não parece haver um padrão claro de endemismo para as espécies que ocorrem em áreas inundáveis da Amazônia. No entanto, é possível notar que áreas de várzeas e igapós não são homogêneas ao longo da bacia Amazônica, visto que são divididas em pelo menos quatro ecorregiões. De acordo com a WWF, uma ecorregião é “uma grande unidade de terra ou água que contém um conjunto geograficamente distinto de espécies, comunidades naturais e condições ambientais”. Os limites das ecorregiões de terra firme coincidem com os das áreas de endemismo (veja neste material) e, portanto, são conceitos complementares.

Realizamos um estudo nas várzeas do segundo maior rio da Amazônia, o rio Madeira, com o objetivo de analisar os padrões de diversidade e ocorrência de espécies de aves ao longo de diferentes pontos destas várzeas. Percorremos cerca de 800 km desde Porto Velho, no estado de Rondônia, e que corresponde à porção média do rio Madeira, até a sua foz, onde ocorre o encontro com o rio Amazonas.

Registramos 402 espécies de aves nos diferentes ambientes de várzea do rio Madeira. Mais da metade destas espécies (56,7%) são aves típicas de ambientes inundáveis e 43,3% são aves comumente registradas em ambiente de terra firme, mas que também habitam as várzeas, especialmente no período de águas baixas.

 Formigueiro-preto-e-branco, cujo nome científico é Myrmochanes hemileucus (Sclater & Salvin, 1866), é uma espécie de ave que habita exclusivamente ilhas fluviais da bacia amazônica. Foto: Bianca Darski.

Nossos resultados revelam que não há diferença na diversidade de espécies de aves entre as duas margens do rio Madeira, uma distância que pode chegar a quase 10 km em períodos de cheias extremas. Por outro lado, nossos resultados indicam que as espécies de aves não são as mesmas ao longo do rio, ou seja, que ocorre uma substituição de espécies da porção média do rio Madeira até sua foz. Além disso, as aves que observamos nas ilhas fluviais são consideravelmente distintas daquelas vistas ao longo das margens. Estas espécies, como o formigueiro-preto-e-branco (Myrmochanes hemileucus) e o joão-de-barriga-branca [Mazaria (Synallaxis) propinqua], são exemplos de aves dependentes dos sistemas de ilhas fluviais.

Nossa pesquisa ressalta a elevada diversidade de aves presente nas várzeas do rio Madeira e sugere que o padrão de distribuição espacial destas espécies está relacionado ao gradiente de altitude. Além disso, reforça o valor das planícies de inundação para a manutenção de uma parcela importante da avifauna amazônica. A conservação desta imensa biodiversidade depende que se mantenham as características naturais destes ambientes.

João-de-barriga-branca, cujo nome científico é Mazaria (Synallaxis) propinqua (Pelzeln, 1859), é uma espécie de ave que habita exclusivamente ilhas fluviais da bacia amazônica. Foto: Bianca Darski.

Ciência se faz com parceria

Os resultados apresentados neste texto são parte da pesquisa realizada por Bianca Darski durante o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Zoologia, no Museu Paraense Emílio Goeldi em convênio com a Universidade Federal do Pará. A orientação foi de Marcos Pérsio e coorientação de Alexandre Aleixo. Esta pesquisa é parte de um estudo mais amplo, que contou com o apoio financeiro do governo federal, através do projeto “Subsídios para o planejamento de áreas protegidas nas várzeas do rio Madeira” (CNPq Processo n° 550331/2010-7), coordenado por Ana Luisa Albernaz do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Borges, S. H., & Carvalhaes, A. (2000). Bird species of black water inundation forests in the Jaú National Park (Amazonas state, Brazil): their contribution to regional species richness. Biodiversity & Conservation9(2), 201-214. (acesse aqui)

Da Silva, J. M. C. (2012). Áreas de endemismo, corredores de biodiversidade e a conservação da Amazônia. In: Conservação da Biodiversidade em paisagens antropizadas do Brasil, capítulo 22. Editora UFPR. (acesse aqui)

Remsen Jr, J. V., & Parker III, T. A. (1983). Contribution of river-created habitats to bird species richness in Amazonia. Biotropica, 223-231. (acesse aqui)

Ribas, C. C., & Aleixo, A. (2019). Diversity and evolution of Amazonian birds: implications for conservation and biogeography. Anais da Academia Brasileira de Ciências91. (acesse aqui)

Silva, Bianca Darski. Padrão de distribuição de assembleias de aves nas florestas de várzea do rio Madeira. (2014). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém. Programa de Pós-Graduação em Zoologia. (acesse aqui)

Bianca Darski é bióloga (UFRGS), mestre em zoologia (MPEG/UFPA) e doutora em ecologia (UFRGS). Veja mais na Plataforma Lattes e ResearchGate.

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