Frugívoros aumentam o sucesso de germinação de uma árvore de grande porte na Amazônia: o caucho.
3 de Junho de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos
Por Raíssa Sepulvida Alves
Frugívoros são os animais que se alimentam de frutos sem danificar as sementes. Esse comportamento é observado, por exemplo, em diversas espécies de primatas (veja aqui) e aves (veja aqui). A frugivoria é uma interação mutualística entre as plantas angiospermas (plantas com frutos) e os animais vertebrados frugívoros. Essa interação beneficia as espécies vegetais em diversas etapas. Em um estudo que está sendo finalizado, realizamos um experimento de campo em Cotriguaçu, no Mato Grosso, comparando dois processos importantes da frugivoria: a limpeza da semente e, a remoção das sementes para longe da árvore coespecífica (árvore da mesma espécie).
No primeiro processo da frugivoria, o animal remove a polpa do fruto (que em muitos casos é carnosa) para se alimentar, deixando as sementes limpas. Nós humanos fazemos o mesmo, por exemplo, com o abacate e a manga: comemos a polpa e descartamos o “caroço”. A limpeza das sementes reduz o ataque de patógenos e predadores, que são atraídos pela polpa suculenta e rica em açúcares. Quando vemos os frutos que apodrecem em nossa casa, eles também estão sendo atacados por patógenos. Além de repelir os organismos danosos, a limpeza da semente também remove os inibidores da germinação, acionando os mecanismos de desenvolvimento do embrião, que fica no interior da semente.
Na segunda etapa da frugivoria, o animal pode ingerir o fruto inteiro sem causar danos na semente. Nesse caso, o animal defeca as sementes já limpas e intactas ao longo da área que usa para se movimentar. Nós fazemos o mesmo com frutos que têm as sementes pequenas, difíceis de serem removidas manualmente, como as uvas e a goiaba: engolimos o fruto com polpa e sementes. Se nós humanos ainda habitássemos as florestas como nossos antepassados distantes, iríamos espalhar as sementes no solo ao defecar. Pode parecer estranho imaginar essa cena, mas é exatamente o que acontece com os animais silvestres. Ao limparem e dispersarem as sementes, os frugívoros atuam como jardineiros das florestas, aumentando as chances das sementes germinarem e no futuro tornarem-se plantas adultas que produzirão novos frutos.
Macaco-barrigudo (Lagothrix cana) se alimentando. Créditos: Raíssa Sepulvida Alves.
O caucho (Castilla ulei) é uma espécie de árvore que tem seus frutos comumente consumidos por grandes primatas da Amazônia, como o macaco-aranha (Ateles sp.) e o macaco-barrigudo (Lagothrix sp.). Esses animais se alimentam da polpa do fruto, descartando as sementes limpas debaixo da árvore coespecífica ou as dispersam para longe.
Realizamos um experimento de germinação em campo para testar a importância da limpeza da semente e da remoção para longe do coespecífico, simulando desta forma a ação de um primata frugívoro (mas também de outros animais frugívoros), limpando a semente manualmente. Sementes limpas germinaram 9,5 vezes mais e produziram 9 vezes mais mudas do que sementes que não foram limpas, independente do local que foram depositadas. Esses resultados nos dizem que a limpeza da semente por frugívoros é um processo determinante para germinação do caucho.
Na nossa área de estudo, em Cotriguaçu (MT), observamos os macacos-barrigudos (L. cana) se alimentando dos frutos dessa espécie e de pelo menos mais outras 25 espécies de frutos entre agosto de 2018 e dezembro de 2019.
Fêmea de macaco-barrigudo (Lagothrix cana) com um filhote nas costas se alimentando de caucho (Castilla ulei). Ilustração de Paula Paz (todos os direitos reservados).
Caucho em espanhol significa borracha. Essa espécie de árvore foi pioneira na exploração da borracha, antes mesmo da seringueira (Hevea brasiliensis). O caucho é uma espécie de ciclo de vida longo, ou seja, os indivíduos demoram para se tornarem adultos reprodutivos e, por isso, são mais suscetíveis à mortalidade precoce por eventos imprevisíveis (como mudanças no clima e queda de outras árvores adultas). No nosso estudo, por exemplo, mesmo com a remoção da polpa, apenas 1% dos 800 indivíduos monitorados permaneceram vivos após 300 dias. Por isso, o grande aumento na taxa de germinação após a manipulação do fruto pelos frugívoros é importante para compensar a alta taxa de mortalidade de plântulas e manter a renovação das suas populações.
Estágios do desenvolvimento do caucho. (a) Infrutescência carnosa, (b) sementes limpas e (c) germinando, (d) plântulas com 10 dias e (e) cinco meses de monitoramento. Figura de Sepulvida (2020).
Esquema mostrando sementes com polpa atraindo diversos predadores e fungos patogênicos embaixo da árvore em frutificação, onde há uma alta densidade de frutos. Quando limpas por frugívoros como o macaco-barrigudo, as sementes escapam desses agentes de mortalidade e têm maiores chances de germinar e se tornarem plântulas independente do local que são depositadas. Figura de Sepulvida (2020).
Os macacos-barrigudos são os frugívoros com maior atividade no local estudado em Cotriguaçu (1,8 indivíduos/10 km). Esses animais são capazes de consumir grande quantidade de frutos do caucho. Se fizermos o raciocínio inverso: espécies como o caucho, que dependem de grandes frugívoros para manter seu ciclo de reprodução, enfrentam duas ameaças – a perda de área florestal em si e a perda dos grandes dispersores. Vertebrados de grande porte são os primeiros animais a serem extintos localmente, seja por caça ou por degradação de hábitat. Por mais que pequenos fragmentos de florestas se mantenham em pé, o desaparecimento destes animais, como o macaco-barrigudo, prejudica a permanência de espécies dependentes da frugivoria como o caucho.
Número médio de sementes que (a) germinaram, (b) tornaram-se plântulas e (c) média de indivíduos que morreram em até 297 dias nos tratamentos: sementes limpas ou sementes com polpa (sem manipulação do frugívoro) depositadas embaixo da árvore coespecífica (mesma espécie) ou heteroespecífica (espécie diferente). Cada unidade amostral continha 10 sementes. Figura de Sepulvida (2020).
Como vemos acontecer na Amazônia, amplas áreas de florestas vêm sendo convertidas em pastagens e monoculturas ou mesmo sofrendo extração irregular de madeira. Tais ameaças resultam em um efeito cascata de perda de animais e das espécies vegetais que estes dispersam. Essa perda de interações já é bem avançada na Mata Atlântica, que é explorada desde o Brasil colônia. E se não freamos o desmatamento no norte do país, vamos observar um processo semelhante acontecer na Amazônia. Assim, estudos como o nosso, que avaliam os benefícios e a complexidade das relações ecológicas nesse sistema amazônico megadiverso e equilibrado, porém sob constante risco de ameaça, são extremamente importantes.
Ciência se faz com parceria
Este projeto foi desenvolvido como parte da dissertação de mestrado da bióloga Raíssa Sepulvida pelo Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Biodiversidade da UNESP – Rio Claro, sob orientação da Professora Dra. Laurence Culot do Laboratório de Primatologia e coorientação do Dr. Carlos Peres, professor da Escola de Ciências Ambientais da Universidade de East Anglia, Reino Unido. As atividades de campo foram realizadas na Fazenda São Nicolau/ONF-Brasil em parceria com a empresa de ecoturismo SouthWild e, foram financiadas pela FAPESP (processo 2018/11358-7) e Rufford Foundation.
Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!
Comita, L. S. et al. (2014) Testing predictions of the Janzen-Connell hypothesis: A meta-analysis of
experimental evidence for distance- and density-dependent seed and seedling survival. Journal of Ecology, 102(4), 845-856. (acesse aqui)
Fuzessy, L. F. et al. (2016). How do primates affect seed germination? A meta-analysis of gut passage effects on neotropical plants. Oikos, 125(8), 1069-1080. (acesse aqui)
Levi, T., Peres, C. A. (2013). Dispersal vacuum in the seedling recruitment of a primate-dispersed Amazonian tree. Biological Conservation, 163, 99-106. (acesse aqui)
Sepulvida, R. (2020). Effect of fruit handling by frugivores on seed dispersal effectiveness. Dissertação de mestrado, Pós-graduação em Ecologia e Biodiversidade, Universidade Estadual Paulista (UNESP – Rio Claro). (acesse aqui)
Matérias selecionadas
- Extinção de grandes animais tem efeito negativo sobre a floresta e o clima. (2016). Ciclo Vivo. (acesse aqui)
- Macacos têm papel fundamental para a dispersão de sementes. (2016). Instituto Humanitas Unisinos. (acesse aqui)
- Sem bichos, a floresta morre. (2001). Revista FAPESP, Ecologia. (acesse aqui)
Raíssa Sepulvida Alves é bióloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Ecologia e Biodiversidade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – Rio Claro). Currículo Lattes e ResearchGate.