Iauaretê: a vida secreta das onças-pintadas em Mamirauá

18 de novembro de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Daniele Barcelos

O livro “Meu Tio Iauaretê”, de Guimarães Rosa, conta a história de um homem contratado para matar onças que se apaixona por uma onça-pintada. Iauaretê, em tupi, significa onça verdadeira. Iauaretê é também o nome do projeto dedicado a estudar e conservar as onças-pintadas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, situada na Amazônia central. Neste primeiro texto, que é parte de uma série que será apresentada aqui no Blog do Conexões Amazônicas, conto um pouco sobre o estilo de vida singular das onças-pintadas da várzea amazônica.

As onças-pintadas (Panthera onca) são parentes próximos dos leões, leopardos, leopardos-das-neves e tigres, os grandes felinos da África e da Ásia. Não à toa, a onça-pintada é o maior felino das Américas, e o maior predador terrestre do nosso continente. A função ecológica de um predador é controlar as populações das espécies das quais se alimentam, mantendo assim a estrutura e o funcionamento equilibrado do ecossistema, equilíbrio este que não é estático, mas sim dinâmico. O chamado “efeito cascata” acontece quando um predador de topo, como a onça, é extinto do ambiente, gerando um desequilíbrio da população de presas e em todos os níveis seguintes do ecossistema.

Onça-pintada deitada sobre tronco de uma árvore da floresta de várzea em Mamirauá, Amazônia Central. A fêmea Pérola, na foto, possui uma variação genética chamada melanismo, que torna a coloração dos pêlos mais escura. Onças melânicas são muitas vezes chamadas de onça-preta ou pantera-negra, mas trata-se da mesma espécie. Foto: Wezddy del Toro.

Hoje, a onça-pintada já foi extinta de quase 50% das áreas onde ocorria originalmente – do norte do México à Argentina central. Por isso, esta espécie é classificada como ameaçada de extinção em vários países da América Latina. No Brasil, a Amazônia e o Pantanal são biomas fundamentais para a sobrevivência da onça-pintada. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá abriga uma das maiores densidades de onças já conhecidas. Em Mamirauá, as onças têm um estilo de vida nunca antes descrito pela ciência (apesar de já ser observado há muito tempo pelos ribeirinhos da região).

Em um artigo publicado este ano na seção The Scientific Naturalist da revista Ecology, Emiliano Ramalho, coordenador do projeto Iauaretê, e colaboradores descreveram este comportamento único das onças: viver sobre as águas!

Já se sabia que grandes felinos podem subir em árvores e que as onças são adaptadas a áreas alagadas, podendo atravessar a nado  grandes trechos de rios e lagos, que comem peixes e conseguem até caçar e dominar jacarés dentro d’água! Mas em Mamirauá, onde o ciclo natural da cheia dos rios inundam as florestas da várzea, deixando a reserva completamente alagada durante até quatro meses por ano, como as onças sobrevivem?

Floresta de várzea alagada em julho de 2019, época de cheia na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O nível da água pode subir até a copa das árvores. Foto: Daniele Barcelos.

No projeto Iauaretê, capturamos as onças para instalar colares VHF/GPS, que nos mandam, via satélite, os dados de localização geográfica a cada seis horas. Assim, monitoramos os movimentos de diferentes onças-pintadas durante anos. Além disso, conseguimos rastrear os animais que receberam o colar e encontrá-los em seu habitat natural. Cada indivíduo capturado recebe um nome (Fofa, Pérola, Baden, etc.) e cada nome tem uma história. 

Com os anos de monitoramento ficou comprovada essa descoberta sensacional: As onças-pintadas permanecem o ano inteiro na várzea, mesmo com a floresta alagada.

Na época da cheia, elas não saem de Mamirauá buscando áreas secas das florestas de terra firme, ou seja, áreas que não inundam. Ao invés disso, as onças adotam um estilo de vida semi-aquático: comendo, dormindo e até se reproduzindo nos galhos das imensas árvores da floresta de várzea amazônica, nadando de uma copa à outra!

Nosso projeto já registrou várias onças vivendo sobre as águas. A Fofa, por exemplo, foi avistada com seu filhote de poucos meses de vida (veja a imagem abaixo). Uma mamãe onça vivendo na floresta alagada e ainda criando a sua ninhada é algo incrível! O macho Baden foi visto em clima de romance com uma parceira, a dizer pelas vocalizações de acasalamento. Encontramos também restos de animais que são o principal alimento das onças nessa época do ano: preguiças, primatas e outros mamíferos arborícolas.

Um filhote de onça-pintada de pé em um tronco sobre a água, aos cuidados de sua mãe, Fofa, que deitada apenas nos observa (canto superior esquerdo da foto). O colar de VHF/GPS permitiu rastrear e chegar até eles. Foto: Horst LaRocca.

Baden, macho monitorado pelo Projeto Iauaretê, deitado sobre os troncos e acompanhado de uma fêmea. Foto: Emiliano Ramalho

A adaptação das onças de Mamirauá diz muito sobre a capacidade deste grande felino em habitar diferentes ambientes. Por essa razão, é importante conservar e recuperar as populações de onças-pintadas em toda sua distribuição geográfica, garantindo o equilíbrio de cada ecossistema que estes felinos ajudam a regular. Além disso, nos preocupa muito o futuro destes animais tão adaptados a um ecossistema que corre o risco de sofrer alterações bruscas devido às mudanças climáticas e à ação humana predatória na Amazônia. Nos próximos textos falaremos sobre os conflitos e as estratégias para a conservação deste grande felino.

Ciência se faz com parceria

 As informações deste texto são resultados das pesquisas coordenadas pelo Dr. Emiliano Ramalho no Grupo de Pesquisas em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia (GP Felinos) do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM). O Instituto Mamirauá é supervisionado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e conta com o apoio do governo federal. Muitos integrantes do Grupo de Pesquisa em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia são ou foram bolsistas do Programa de Capacitação Institucional (PCI) do CNPq. Miguel Monteiro e Marcos Brito colaboraram na construção deste texto.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Matéria da Folha de São Paulo de Everton Lopes Batista (2021). Onças da Amazônia vivem em árvores durante um terço do ano mostra estudo (acesse aqui)

Ramalho, E. E. et al. (2021). Walking on water: the unexpected evolution of arboreal lifestyle in a large top predator in the Amazon flooded forests. Ecology, 102 (5), 1-4. (acesse aqui)

Daniele Barcelos é bióloga (UFMG), mestre em ecologia (UnB) e desde 2019 participa do projeto Iauaretê, como bolsista PCI no Grupo de Pesquisa em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM). Em sua pesquisa, ela investiga a dinâmica da comunidade de mamíferos nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã.

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate, ou entre em contato por e-mail.

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