O ciclo da água da Amazônia observado do espaço

17 de abril de 2022 | Tempo de leitura: 11 minutos

Por Alice Fassoni-Andrade, Fabrice Papa, Rodrigo Paiva, Sly Wongchuig e Ayan Fleischmann

A Bacia Amazônica é a maior bacia hidrográfica do mundo. Abrange cerca de seis milhões de quilômetros quadrados, representando cerca de um terço da América do Sul. Embora a grande escala e a dificuldade de acesso tornem as observações de campo desafiadoras, o sensoriamento remoto pode fornecer informações valiosas. Um artigo publicado recentemente na Reviews of Geophysics explora os pontos fortes e as limitações das observações por satélite da bacia amazônica e faz recomendações para melhorar esses sistemas observacionais.

Por que a Amazônia é tão importante para os hidrólogos estudarem?

A Bacia Amazônica é notável por suas altas taxas de precipitação, evaporação e vazão fluvial. Este último representa cerca de 20% da quantidade total de água doce global que chega ao oceano a cada ano. A hidrologia da Amazônia tem impactos de longo alcance no clima regional e global. Por exemplo, a bacia fornece umidade para as partes do sul da América do Sul. Como uma grande fonte de calor nos trópicos e fortes processos convectivos, também impacta significativamente a circulação atmosférica global. Além disso, as águas superficiais da Amazônia são uma importante fonte e sumidouro de dióxido de carbono e a maior fonte natural de metano nos trópicos. 

Que ferramentas observacionais os cientistas usam para monitorar os processos hidrológicos na bacia amazônica? 

A bacia amazônica é uma grande e remota bacia hidrográfica tropical, principalmente coberta por floresta densa, o que torna as observações in situ desafiadoras. Há uma série de redes de monitoramento que medem o nível da água e a pluviosidade, além de torres de fluxo que rastreiam a troca de CO2 entre a floresta e a atmosfera. Essas redes são essenciais para os cientistas entenderem os processos hidrológicos, mas também são limitadas devido à grande extensão da bacia e à variabilidade espaço-temporal dos processos dentro dela. Alguns fenômenos, como a extensão de inundações, são quase impossíveis de avaliar in situ.

O sensoriamento remoto é uma ferramenta fundamental para superar essas limitações, pois fornece um ponto de vista observacional mais amplo. Os dados de satélite podem ser usados ​​para estimar uma variedade de fatores, incluindo precipitação, evapotranspiração, nível de água, extensão da superfície da água, concentração de sedimentos, topografia e variação de armazenamento de água em uma grande área e continuamente. A combinação de observações in situ com dados de satélite é um divisor de águas para a ciência. 

Como os avanços no sensoriamento remoto por satélite ajudaram os pesquisadores a entender melhor o ciclo da água na bacia amazônica? 

Graças às suas características de grandes rios e fortes sinais hidrológicos, a bacia amazônica é um laboratório ideal para o desenvolvimento de técnicas de sensoriamento remoto. Os avanços no sensoriamento remoto permitiram a caracterização de diversos processos hidrológicos na bacia. Dois exemplos de destaque são a caracterização das chuvas orográficas na região dos Andes e a estimativa da quantidade de água armazenada anualmente nas várzeas amazônicas. 

Muitas técnicas de sensoriamento remoto desenvolvidas e testadas na Amazônia passaram a ser usadas globalmente. Por exemplo, algoritmos para estimativa de nível de água a partir de altimetria de radar foram avaliados pela primeira vez nos rios largos da bacia amazônica, e as primeiras estimativas das variações do armazenamento total de água sobre os continentes pelo satélite GRACE, foram feitas para a Amazônia.

Imagem de satélite do rio Amazonas. Crédito: Jacques Descloitres, MODIS Rapid Response Team, NASA/GSFC disponível em Visible Earth (imagem de domínio público).

Quais são alguns dos processos ou mudanças mais interessantes ou dramáticos na Amazônia observados por satélites? 

Exemplos de processos interessantes observados por satélites incluem: variabilidade espacial das chuvas devido ao efeito da brisa que ocorre sobre grandes corpos d’água na bacia; a variação espaço-temporal da concentração de sedimentos em rios e lagos; a caracterização da complexa topografia da planície de inundação e das trocas de água entre o rio e a planície de inundação.

As tendências observadas nas variáveis ​​hidrológicas que revelam mudanças dramáticas e recentes na bacia também são tremendamente valiosas. Por exemplo, há uma tendência de aumento da precipitação na parte norte da bacia, aumento da vazão e aumento da área inundada, portanto, os riscos de inundação estão aumentando. O oposto está ocorrendo na região sul, onde há uma tendência de redução de chuvas e vazão. Além disso, o prolongamento do período seco tem aumentado nos últimos anos, o que está gerando estresse hídrico nas florestas tropicais, tornando-as mais vulneráveis ​​à morte. Além disso, influências antrópicas, como desmatamento e mineração, têm causado aumento na concentração de sedimentos e nutrientes nos rios.

Imagem de satélite do rio Amazonas. Crédito: NASA, cortesia de Jeff Schmaltz, MODIS Rapid Response Team, NASA/GSFC disponível em Visible Earth (imagem de domínio público).

Quais são algumas das limitações dos dados baseados em satélite? 

As limitações atuais dos dados de satélite para a bacia amazônica estão frequentemente relacionadas à resolução espaço-temporal, intervalo de tempo e precisão. Por exemplo, o uso de observações visíveis/ópticas, que são ferramentas muito poderosas, são limitadas em regiões cobertas por nuvens e vegetação densa.

Muitas vezes também há um trade-off entre amostragem (quantas vezes o satélite passa sobre o mesmo ponto) e cobertura espacial (tamanho da área). Por exemplo, as técnicas de Radar de Abertura Sintética (SAR) mostram grandes capacidades para medir a extensão da água superficial em alta resolução (10 a 100 metros), mas sofrem com um tempo de revisita temporal baixo, tornando-as inadequadas para monitorar processos hidrológicos rápidos.

Além disso, apesar do crescente número de dados de satélite, ainda é necessário garantir séries temporais suficientemente longas para entender e fazer o levantamento das mudanças ambientais na Amazônia.

Além disso, ainda há dificuldades em derivar certos parâmetros geofísicos de dados baseados em satélites, como evapotranspiração. A estimativa da evapotranspiração é feita de forma indireta e dependente de parâmetros, e os algoritmos atuais precisam ser aprimorados. É o mesmo para a vazão do rio.

O que você recomenda para melhorar as observações por satélite da bacia amazônica? 

Em termos de recomendações técnicas, muitas vezes fazemos sugestões relacionadas ao desenvolvimento de novos algoritmos e fusão de dados. O reconhecimento de incertezas em vários dados de sensoriamento remoto e os trade-offs entre resolução temporal e espacial apontam para a necessidade de abordagens mais integrativas. Este é o caso do mapeamento de padrões de inundação e evapotranspiração de longo prazo em altas resoluções espaço-temporais. A inteligência artificial desempenhará um papel importante no desenvolvimento futuro. 

Acreditamos também que um melhor acoplamento dos conjuntos de dados de Observação da Terra com modelos hidrológico-hidráulicos e modelos de superfície terrestre (como assimilação de dados e interpolação espaço-temporal) também é um passo necessário na modelagem do Sistema Terrestre, considerando o aspecto dinâmico da hidrologia da Amazônia. 

Novas missões orientadas para a hidrologia nos próximos anos, como “Topografia de Águas de Superfície e Oceânica (SWOT)” e “ISRO-NASA SAR (NISAR)”, proporcionarão um novo marco no monitoramento das águas amazônicas a partir do espaço. 

Da mesma forma, as constelações de nanossatélites forneceram a capacidade de atualizar frequentemente informações sobre a superfície da Terra, o que podem torná-los críticos para monitorar a evolução de eventos como incêndios florestais e inundações, mas a custos mais baixos do que seus pares maiores. 

Quais são algumas das questões não resolvidas em que pesquisas, dados ou modelagem adicionais são necessários? 

A bacia amazônica está passando por múltiplas pressões naturais e antrópicas, incluindo barragens, mineração, incêndios, secas/cheias e desmatamento, por isso há uma urgência em entender como o ciclo hidrológico é afetado. Apesar do progresso recente, existem poucos estudos que abordam essas questões e muitas oportunidades para novas pesquisas. 

Além disso, embora a observação da Terra por meio de satélites tenha proporcionado avanços científicos revolucionários na compreensão do ciclo da água amazônica nas últimas décadas, ainda é um desafio traduzir o conhecimento e as informações do sensoriamento remoto em informações e indicadores contínuos e valiosos que possam auxiliar os tomadores de decisão a apoiar a governança ambiental da bacia.

O sensoriamento remoto tem potencial para democratizar ferramentas essenciais e novas de monitoramento ambiental, caminhando para um futuro mais sustentável para a maior bacia do mundo. 

Esse texto corresponde à versão traduzida do texto publicado originalmente no blog EOS Editors-Vox: Fassoni-Andrade, A., F. Papa, R. Paiva, S. Wongchuig, and A. Fleischmann. (2022), Amazon water cycle observed from space, Eos, 103, https://doi.org/1editors-vox0.1029/2022EO215002. Published on 13 January 2022.

Ciência se faz com parceria

A pesquisa apresentada neste texto só foi possível devido à colaboração de 23 pesquisadores do Brasil, França, EUA e Peru, representando 12 instituições. No entanto, salientamos que a lista de coautores reflete a desigualdade de gênero e racial na ciência ao redor do mundo: apenas 3 mulheres e um negro. Por outro lado, 8 autores são jovens (menos de 35 anos), 13 não são tão jovens (mais de 35 anos) e 2 são experientes (mais de 65 anos). O apoio financeiro para realizar essa pesquisa é descrito no final do artigo, disponível aqui.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Fassoni-Andrade et al. 2022. Amazon water cycle observed from space, Eos, 103. Published on 13 January 2022. (acesse aqui)

Fassoni-Andrade et al. 2021. Amazon hydrology from space: Scientific advances and future challenges. Reviews of Geophysics, 59, e2020RG000728. (acesse aqui)

Alice Fassoni-Andrade é engenheira ambiental (UFV), mestre em sensoriamento remoto e doutora em recursos hídricos e saneamento ambiental (UFRGS).

Veja mais na Plataforma Lattes e ResearchGate.

Fabrice Papa é diretor de pesquisa (DR2) do Institut de Recherche pour le Developpement (IRD/França). Atualmente atua  na Universidade de Brasília (UNB).

Veja mais no ResearchGate e nesta recente entrevista ao IRD. 

Rodrigo Cauduro Dias de Paiva é Engenheiro Civil formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), mestre e doutor em recursos hídricos e saneamento ambiental (UFRGS). Atualmente é professor da UFRGS, onde atua no Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH).

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.

Sly Wongchuig é engenheiro agrícola formado pela Universidade Nacional Agraria la Molina (UNALM, Peru), mestre em Recursos Hídricos em Sistemas Agrícolas (UFLA), doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental (UFRGS). Atualmente é pesquisador e pós-doutorando no Instituto de Geociências e Ambiente (IGE) na Universidade de Grenoble Alpes (UGA, França).

Veja mais na Plataforma Lattes e no ResearchGate.

Ayan Santos Fleischmann é Engenheiro Ambiental, doutor em recursos hídricos e saneamento ambiental (UFRGS). Atualmente é pesquisador titular e líder do Grupo de Pesquisa em Análise Geoespacial, Ambiente e Territórios Amazônicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Veja mais na Plataforma Lattes, no ResearchGate e nesta recente entrevista ao portal Space4Water.

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