Quantas espécies de peixes existem na bacia amazônica?

Quantas espécies de peixes existem na bacia amazônica?

07 de outubro de 2021 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Cárlison Silva de Oliveira

Algumas das espécies do gênero Bryconops descritas nos últimos anos. Créditos da imagem: Cárlison Oliveira.

Embora ainda não tenhamos uma resposta concreta para esta pergunta, o conhecimento já adquirido em ictiologia – área da ciência que estuda os peixes – nos permite afirmar que a bacia amazônica é detentora da maior diversidade de peixes de água doce do mundo, com mais de 2.700 espécies já conhecidas (veja na imagem abaixo). Apesar deste número já ser impressionante, é estimado que ainda existam centenas ou até milhares de espécies de peixes ainda não descritas formalmente. Em outras palavras, a descrição formal de uma espécie é o seu “batizado”, geralmente registrada em um artigo científico no qual é dado um nome científico e uma descrição detalhada das características da nova espécie. Porém, esse processo não costuma ser tão simples, podendo levar meses ou até anos para um artigo ser publicado. Dessa forma, um dos grandes desafios tem sido acompanhar o conhecimento sobre as espécies, principalmente as de pequeno porte (até cerca de 15 cm), com a perda acelerada de habitat, principalmente nos últimos anos.

Representantes de algumas das mais de 2.700 espécies de peixes encontradas na bacia amazônica. Escala da barra branca = 1 cm. Fonte: Silva-Oliveira et al. (2016).

Diante deste cenário, os taxonomistas, ou seja, os profissionais que descrevem, identificam e classificam os organismos (veja como é feita a classificação) têm exercido um papel fundamental no conhecimento e compreensão da diversidade de peixes. Contudo, conhecer essa megadiversidade, além de exigir estratégias bem delimitadas, demanda um grande esforço coletivo de especialistas. Nesse sentido, umas das práticas mais eficientes para o conhecimento da biodiversidade é o estudo de revisões taxonômicas. 

Como funcionam as revisões taxonômicas dos peixes? 

Ao longo de décadas, centenas de expedições já foram realizadas na bacia amazônica com o objetivo de catalogar as espécies de peixes. Nessas expedições, é comum o reconhecimento de espécies novas, principalmente aquelas espécies ditas “bandeirosas”, “chamativas”, que apresentam alguma característica peculiar, que ao primeiro olhar de um especialista experiente, são prontamente reconhecidas. Contudo, muitas espécies compartilham várias características entre si e, dessa forma, distingui-las das espécies já descritas se torna mais difícil (veja um exemplo na figura abaixo), necessitando estudos comparativos minuciosos, incluindo características ósseas, ou até genéticas para que sua verdadeira identidade seja confirmada (veja a imagem abaixo).

Exemplares de peixes coletados em um igarapé amazônico, no estado do Pará. O segundo exemplar, de baixo para cima, pertence a uma espécie nova. Créditos da imagem: Cárlison Oliveira.

Esqueletos de peixes por meio de diferentes técnicas: As imagens A, B e C são de exemplares diafanizados e corados (veja o processo). A imagem D foi obtida por meio de Raio-X. Créditos da imagem: Cárlison Oliveira.

Além do mais, vários gêneros ou grupos de espécies, ainda apresentam problemas taxonômicos que inviabilizam a precisa delimitação das espécies. Em muitos desses casos, o que ocorre é que as espécies já descritas são pouco conhecidas e/ou a descrição é muito antiga e pouco informativa. Assim, não é possível ter clareza se estamos diante de uma nova espécie, ou de uma espécie já descrita. Apesar de não ser tão comum hoje em dia, pode acontecer de uma espécie ter sido descrita mais de uma vez, principalmente quando existe dimorfismo sexual (machos são bem diferentes das fêmeas), espécimes com alguma anomalia, ou ainda pelo desconhecimento de espécies já descritas, entre outros fatores. 

Por todos estes motivos, apenas um trabalho minucioso de revisão taxonômica é capaz de solucionar questões tão complexas, já que para avançar no conhecimento taxonômico do grupo em estudo é fundamental que se conheça muito bem as espécies já descritas. Dessa forma, em um trabalho de revisão taxonômica, o foco não é apenas descrever espécies novas, mas também em “redescobrir” espécies descritas anteriormente e melhorar as informações sobre elas.

Apesar das condições adversas, seja por falta de recursos financeiros e/ou logísticos, vários estudos de revisões taxonômicas já foram realizados e outros estão sendo conduzidos com diversos grupos de peixes da bacia amazônica. Para tanto, grande parte da fonte de dados para estas pesquisas está atualmente armazenada em coleções biológicas no Brasil e no exterior, as quais funcionam como verdadeiros repositórios da biodiversidade. Destaca-se no Brasil a coleção de peixes do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazonia (INPA), Museu de Zoologia da USP (MZUSP) e Museu Nacional do Rio de Janeiro (MNRJ), que ao longo de suas histórias armazenam uma grande quantidade de peixes preservados em vidros (chamados de lotes) com álcool 70% (incluindo amostras de tecidos para análises de DNA) das mais variadas localidades. Nestas coleções está catalogada grande parte das espécies de peixes já conhecida da bacia amazônica. Muitas vezes há espécies novas que passaram despercebida no meio de milhares de lotes guardados em estantes nas coleções, onde é comum especialistas reconhecerem exemplares de espécies ainda não descritas.

Parte do acervo da Coleção de Peixes do INPA. Atualmente estão catalogados quase 60 mil lotes de peixes nessa coleção. Créditos da imagem: Cárlison Oliveira.

Assim, para o estudo de revisão taxonômica, o pesquisador precisa visitar diversas coleções para conseguir analisar o máximo de material possível e comparar espécimes das mais variadas localidades. Em um destes estudos, realizamos a revisão taxonômica do gênero de peixes chamado Bryconops, conhecido popularmente no Brasil como piabas ou lambaris (veja a primeira imagem deste texto aqui no blog). Dentro deste gênero, 19 espécies eram conhecidas até o ano de 2015). Ao longo de mais de cinco anos de investigações, já analisamos mais de 2 mil lotes (um único lote pode conter um ou centenas de espécimes ou indivíduos) de várias localidades da América do Sul, principalmente da bacia amazônica.

Com o avanço no estudo da taxonomia desses peixes, oito espécies já foram descritas em artigos científicos entre os anos de 2015 e 2020 (ver imagem acima) e outras duas estão prestes a ser “batizadas”. Contudo, nossos resultados apontam a existência de pelo menos mais 18 espécies ainda para serem descritas somente para este gênero, sendo 15 delas da bacia amazônica. Além disso, verificamos que algumas espécies são endêmicas, ou seja, restrita a uma determinada área (ex: Bryconops munduruku do rio Tapajós, Bryconops rheoruber do rio Xingu, entre outras). Por outro lado, outras espécies que eram conhecidas de um único rio, são na verdade muito mais distribuídas na bacia amazônica.

Embora ainda não tenhamos a resposta para a pergunta de quantas espécies de peixes ocorrem na bacia amazônica, cada estudo dos taxonomistas contribui para que cheguemos mais próximo de uma estimativa realista do número de espécies. O surgimento de novas espécies é um processo natural (que pode levar muitos anos), assim como também é a extinção. No entanto, infelizmente, é provável que muitas espécies de peixes (e outros organismos) serão extintas antes mesmo de serem descritas formalmente pela ciência devido ao rápido avanço da degradação ambiental (como poluição das águas, sobrepesca, desmatamento, barragens, garimpo) o qual se soma à complexa e minuciosa atividade de estudar a taxonomia de espécies.

Ciência se faz com parceria

Os resultados apresentados no texto são parte da tese de doutorado de Cárlison Silva-Oliveira, desenvolvida no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Durante sua pesquisa, Cárlison contou com a parceria de diversos pesquisadores de outras instituições do Brasil (UFOPA, MNRJ, Unicamp) e dos Estados Unidos (The Academy of Natural Sciences of
Philadelphia
 – ANSP). 

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Crampton, W.G.R., de Santana, C. D., Waddell J.C. & Lovejoy N. R. 2016. A taxonomic revision of the Neotropical electric fish genus Brachyhypopomus (Ostariophysi: Gymnotiformes: Hypopomidae), with descriptions of 15 new species. (acesse aqui)

Dagosta, F., de Pinna M. 2019. The fishes of the Amazon: distribution and biogeographical patterns, with a comprehensive list of species. (acesse aqui)

De Oliveira, R., Zuanon J., Rapp Py-Daniel L., Birindelli J. O., Sousa L. 2020. Taxonomic revision of Hopliancistrus Isbrücker & Nijssen, 1989 (Siluriformes, Loricariidae) with redescription of Hopliancistrus tricornis and description of four new species. (acesse aqui)

De Santana, C. D. e colaboradores. 2020. Unexpected species diversity in electric eels with a description of the strongest living bioelectricity generator. (acesse aqui)

Silva-Oliveira, C., Sabaj M. H., Ota R. P. & Rapp Py-Daniel L. 2019. Bryconops rheorubrum (Characiformes: Iguanodectidae), new species from the Rio Xingu Rapids, Brazil. (acesse aqui)

Silva-Oliveira, C., Moreira C. R., Lima F. & Rapp Py-Daniel L. 2020. The true identity of Bryconops cyrtogaster (Norman), and description of a new species of Bryconops Kner (Characiformes: Iguanodectidae) from the Rio Jari, lower Amazon basin. (acesse aqui)

Cárlison Silva-Oliveira é biólogo pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Recursos Aquáticos Continentais Amazônicos (PPG-RACAM) da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), e doutor em Biologia (Biologia de Água Doce e Pesca Interior- PPG-BADPI) pelo Instituto Nacional e Pesquisas da Amazônia (INPA). Atualmente Cárlison é bolsista do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).

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