Iauaretê: convivendo com as onças-pintadas em Mamirauá

01 de maio de 2022 | Tempo de leitura: 6 minutos

Por Miguel Monteiro

Carismáticas, ferozes, lindas, traiçoeiras — não importa em que lugar do Brasil você esteja, a palavra “onça” inspira uma variedade de reações e sentimentos que irão da admiração ao medo. Para quem mora na cidade e a onça-pintada é um animal distante, talvez apenas vista na TV ou no zoológico, é mais comum ter uma percepção positiva sobre a espécie. Porém, para quem acorda pela manhã e acha pegadas frescas de onça-pintada passando bem pela porta de sua casa (como já aconteceu na Reserva Mamirauá!), essa relação pode ser mais conturbada.

Carismática e fofa, ou assustadora e perigosa? Dependendo do contexto de onde se vive, nossa percepção sobre a onça-pintada pode variar muito, o que influencia nossa relação com este animal. Foto: Miguel Monteiro.

Seja por causa da sensação de insegurança ou por causa de prejuízos econômicos, como por exemplo uma onça atacar os animais domésticos de uma fazenda, entre outros motivos, muitas vezes onças-pintadas são perseguidas e mortas quando entram em contato com seres humanos. Isso é o que comumente chamamos de conflito humano-fauna (apesar de que a palavra “conflito” remete a uma relação negativa consciente entre as duas partes — o que não é o caso da onça). Estes conflitos ocorrem no mundo inteiro e com milhares de espécies de animais, mas são especialmente comuns (e complexos!) com grandes carnívoros.

Onça-pintada abatida em comunidade dentro da Reserva Mamirauá. Foto: Miguel Monteiro.

No Grupo de Pesquisa em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia do Instituto Mamirauá, trabalhamos com as dimensões humanas do conflito entre comunidades tradicionais e onças-pintadas. Ou seja, nós investigamos as características desse conflito, como quais animais domésticos são predados por onças e em que época do ano há mais relatos de ataques, assim como os motivos que influenciam esse conflito. Essa abordagem em conjunto com as comunidades tradicionais visa proporcionar medidas que diminuam as interações negativas entre as pessoas e as onças-pintadas com as quais convivem. Dessa maneira, garante-se a conservação da espécie em questão assim como busca-se a melhoria da qualidade de vida dessas comunidades.

Para diminuir estas situações de conflito, existem abordagens cujo objetivo é aliviar os prejuízos econômicos oriundos das interações com onças, como por exemplo construir um recinto ou uma cerca elétrica para proteger animais domésticos de ataques. Outra abordagem possível é oferecer algum incentivo para conviver com os animais causadores do conflito, como capacitações ou alternativas de renda, melhorando a percepção local em relação à espécie. 

Na Reserva Mamirauá, há uma iniciativa de turismo de base comunitária que opera a partir da Pousada Uacari e não só envolve as comunidades locais nas atividades de turismo, como também gera benefícios econômicos diretos para essas comunidades.

Assim, em parceria com a pousada, o nosso grupo de pesquisa com felinos desenvolveu um pacote turístico específico para o avistamento de onças-pintadas que são monitoradas pelo projeto e podem ser vistas andando sobre as árvores na época da cheia dos rios.

Esse pacote turístico, chamado Jaguar Expedition, tem como objetivo proporcionar um retorno financeiro para subsidiar as atividades de pesquisa e conservação das onças-pintadas e também oferece um retorno financeiro direto para as comunidades locais, além do que já é previsto pelas atividades regulares do turismo.

Neste momento, estamos investigando se o envolvimento dessas comunidades com atividades turísticas ligadas ao avistamento de onças-pintadas tem mudado a percepção dos moradores locais em relação às onças, tendo em vista os benefícios econômicos diretos que essa espécie tem proporcionado através do turismo. É comum ouvir falar que o turismo é uma solução para situações de conflito humano-fauna, assim como são frequentes os relatos de comunitários locais dizendo que depois que começaram a trabalhar com o turismo de avistamento de onças sua opinião sobre a espécie mudou muito. Contudo, é preciso levantar e analisar os dados para comprovar se essa hipótese se confirma, justamente a fase na qual o nosso projeto se encontra.

Pesquisador Miguel Monteiro realizando entrevistas junto às comunidades da Reserva Mamirauá para entender como o turismo de avistamento de onças-pintadas influencia a relação entre os moradores locais e estes animais. Foto: Marcos Brito.

No cenário político e socioambiental no qual vivemos atualmente, em meio à crescente destruição dos ambientes naturais e ao aumento constante da população humana, interações entre seres humanos e animais selvagens se tornarão cada vez mais  frequentes.

Por isso, iniciativas que busquem amenizar os conflitos que surjam dessas interações são essenciais para garantir a persistência a longo prazo de espécies ameaçadas de extinção e a qualidade de vida de comunidades mais vulneráveis. São especialmente cruciais projetos que busquem promover a coexistência humano-fauna de forma conjunta com comunidades locais, beneficiando-as no processo. Caso se confirme que o turismo de avistamento de onças-pintadas melhora a relação entre as comunidades locais e as onças, além de beneficiar economicamente as próprias comunidades, esta iniciativa se consolidará como uma importante ferramenta na busca por uma convivência mais harmoniosa entre seres humanos e animais selvagens, podendo, inclusive, ser replicada em áreas onde conflitos semelhantes ocorram.

Esta é a segunda publicação da Série Iauaretê no Blog Conexões Amazônicas, uma sequência de relatos sobre as pesquisas realizadas com onças na Reserva Mamirauá. Veja a primeira publicação desta série em Iauaretê: a vida secreta das onças-pintadas em Mamirauá.

Ciência se faz com parceria

Este projeto é realizado pelo Grupo de Pesquisa em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia, liderado pelo Dr. Emiliano Ramalho, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Esta pesquisa também contou com o apoio financeiro da Fundação ACEER.

Quer saber mais? Acesse os materiais abaixo!

Site da Pousada Uacari que oferece o turismo de avistamento de onças-pintadas que beneficia comunidades locais. (acesse aqui)

Knox, J., Negrões, N., Marchini, S., Barboza, K., Guanacoma, G., Balhau, P., Tobler, M. W., Glikman, J. A. (2019). Jaguar persecution without “cowflict”: Insights from protected territories in the Bolivian Amazon. Frontiers in Ecology and Evolution, 7. (acesse aqui)

Zimmermann, A., Johnson, P., de Barros, A. E., Inskip, C., Amit, R., Soto, E. C., Lopez-Gonzalez, C. A., Sillero-Zubiri, C., de Paula, R., Marchini, S., Soto-Shoender, J., Perovic, P. G., Earle, S., Quiroga-Pacheco, C. J., Macdonald, D. W. (2021). Every case is different: Cautionary insights about generalisations in human-wildlife conflict from a range-wide study of people and jaguars. Biological Conservation, 260(109185), 109185. (acesse aqui)

Miguel Monteiro é biólogo pela PUC-Rio e trabalha desde 2019 no Grupo de Pesquisa em Ecologia e Conservação de Felinos na Amazônia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O foco de sua pesquisa está nas relações entre comunidades tradicionais da Amazônia e as onças-pintadas, investigando padrões de conflito e coexistência. 

Veja mais na Plataforma Lattes, no ResearchGate e no Site Pessoal de Miguel.

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